​Rui Ramos. “Fátima é como um elefante na sala"
13-03-2017 - 22:48
 • Aura Miguel

Cem anos depois das aparições, “Fátima ainda não foi colocada na narrativa histórica da maneira que merece”, diz o historiador Rui Ramos em entrevista à Renascença.

Em que contexto histórico acontece o fenómeno de Fátima?

O ano de 1917 é um dos mais difíceis quer para Portugal quer para a Europa. A Europa está na I Guerra Mundial, num ano em que quase todos os governos das potências em guerra caem, inclusive em dois regimes na Rússia. É um ano difícil nas frentes de batalha, onde não há solução, onde tudo corre mal, um ano difícil nas frentes internas, onde há problemas de abastecimento, uma grande impaciência com a continuação da guerra – já são muitos anos de guerra, desde 1914. Em Portugal também é um ano muito difícil. Difícil em parte pelas dificuldades da Europa. O ano em que a Alemanha declarou guerra em 1916. O ano em que, por vontade do governo da república, tropas portuguesas são enviadas para a frente ocidental para combater na Europa. Portugal vai assegurar uns quilómetros de frente contra a Alemanha. São 50 mil soldados portugueses…

Viria a correr mal.

O que já estava a correr mal viria a correr muito mal um ano depois. Mas já estava a correr mal no sentido em que os comandos do Exército estão muito pouco convencidos da vantagem e da razão para ir combater e, ao mesmo tempo, aquilo que poderia ter sido um factor de união das famílias políticas portuguesas – a entrada de Portugal em guerra – é um factor de desunião… Obviamente os republicanos já estavam divididos em monárquicos e católicos. Ainda temos esse factor de tensão política, com discussão…

Temos também crescentes dificuldades de abastecimento que vão levar em Maio de 1917 a grandes motins em Lisboa, com mortos, com confrontos com a polícia. A Guarda Nacional Republicana reprimiu trabalhadores e a população que está revoltada por falta de pão – pura e simplesmente, um rumor de que tinha acabado o pão em Lisboa. As pessoas perdem a cabeça.

As coisas estão cada vez mais caras, os alimentos, os produtos, as pessoas sentem que ganham menos, há essa enorme tensão.

A juntar tudo isso, ainda há a questão da liberdade religiosa, por exemplo?

Há todas as questões de um regime que desde 1910 funciona como a ocupação de um estado pelo Partido Republicano Português. Um partido em guerra não apenas contra aqueles que não são republicanos, mas também em guerra contra muitos que são republicanos, mas que não se reconhecem nesse partido, dirigido por Afonso Costa. O Partido Republicano Português, conhecido também como Partido Democrático, ocupa o poder de uma maneira violenta e agressiva para com as oposições. E depois um conflito que é aberto também pelo Partido Republicano e que o partido se recusa nessa época a atenuar com a Igreja Católica.

1910 e 1911 são também o começo de uma guerra ideológica contra a Igreja Católica, que é o projecto que Afonso Costa assume: acabar com o catolicismo em Portugal em duas ou três gerações. Em 1911 temos a chamada “separação”, mas de facto é uma integração violenta da Igreja no Estado porque aquilo que visa é tornar o clero dependente do Estado e eliminar a influência da hierarquia e da relação com o Vaticano, destruir a Igreja e reduzi-la a um conjunto de padres, funcionários do Estado. Em 1917, quase todos os bispos estavam proibidos pelo governo de estarem em suas dioceses.

Era proibida também a manifestação pública da fé, muitas igrejas estavam fechadas, transformadas em estábulos e outras coisas.

As limitações são de toda ordem: procissões, tocar os sinos, os padres usarem vestes que os possam distinguir como padres e até a tentativa de impor às paróquias um governo em que entram não católicos. As igrejas iam ser administradas, não pelos crentes, não pelos padres, mas por comissões, em que entravam os não católicos, os ateus, os jacobinos militantes.

Havia, obviamente, republicanos que não achavam isso razoável, havia outros que estavam contra isso. Havia uns que tinham o objectivo de limitar a influência do catolicismo, mas achavam que esse conflito não era a melhor maneira de limitar essa influência. E havia outros que, pelo contrário, achavam que a república não tinha de limitar a influência do catolicismo. Aquilo que temos em 1917 é uma grande divisão. Geralmente pensamos nessa divisão entre católicos e republicanos ou entre monárquicos e republicanos, mas não: aquilo que temos é uma divisão em todos os campos.

Temos uma divisão entre o partido republicano de Afonso Costa que está no poder, cada vez mais intolerante e violento, e os outros republicanos que, por várias razões, estão contra, às vezes por conflitos pessoais com Afonso Costa, outros por terem outras ideias sobre o que deve ser a república. Falam muito de uma república para todos os portugueses ao invés de ser uma república só para os republicanos, portanto temos um campo republicano dividido, em conflito.

Se calhar, na Igreja também havia divisões.

Temos também divisões entre os católicos, entre aqueles católicos que identificam a causa da Igreja com a causa da monarquia e outros que estão disponíveis para reconhecer a república, desde que a república não os tente agredir.

Temos também divisões entre os monárquicos. E podemos entrar também com anarquistas, que nesta época dominam os sindicatos em Lisboa e estão em conflito aberto com o regime republicano. Portanto, temos um país muito fragmentado, muito dividido.

E nesse contexto, num lugarejo perdido acontecem as aparições. Como é que analisa esse fenómeno?

Há uma tendência para reduzir o fenómeno de Fátima ao contexto. Dizer que o fenómeno tem a ver única e exclusivamente com o contexto e que se estivesse tudo bem ninguém tinha reparado ou ninguém tinha aparecido, nada tinha acontecido. E se tudo estivesse bem em Portugal em 1917, se não houvesse guerra na Europa, se não houvesse república, nada tinha acontecido.

Isso é não compreender em parte o fenómeno de Fátima. O fenómeno de Fátima não tem simplesmente a ver com estas tensões políticas, sociais, também intelectuais na sociedade portuguesa. Tem a ver com uma cultura popular, de religiosidade popular que existe um pouco à margem disso tudo, até à margem um bocadinho da igreja, e que provavelmente também se pode manifestar com mais força precisamente pelo enfraquecimento da Igreja.

Fátima manifesta-se de uma maneira que talvez não tivesse manifestado noutra situação, não porque correspondesse simplesmente às necessidades dessa situação, mas pura e simplesmente porque essa situação estava aberta. Os videntes de Fátima são confrontados não apenas com hostilidade das autoridades civis, mas também com a desconfiança das autoridades eclesiásticas porque é um fenómeno que eles não controlam.

Um sector sim, mas não foram todas…

A sociedade, as instituições, as forças sociais e políticas estão suficientemente divididas para não haver uma tentativa de controlo, para não funcionar aquilo que teria sido o controlo normal da vivência religiosa popular. E, portanto, é verdade, há padres que desconfiam, há padres que ficam à espera de ver o que é, há crentes que provavelmente não têm opinião nenhuma, há crentes que aderem imediatamente e se tornam activos na promoção de Fátima, activistas, padres e também leigos que se empenham por vontade própria, sem ninguém os encomendar aquilo.

Em 1917 já está muito em causa aquela que era uma cultura materialista e positivista que o republicanismo tinha trazido do século XIX para o XX e que já não é a cultura dominante entre os republicanos. Tinha havido uma reacção, mesmo que intelectual, contra essa tentativa de reduzir toda a existência aos dados positivos e materiais da ciência. Por exemplo, o movimento da Renascença Portuguesa entre os republicanos é já uma tentativa de encontrar para a república uma nova espiritualidade. Nessa fase, eles ainda não pensam que o catolicismo seja essa espiritualidade, mas querem encontrar algo de espiritual, algo popular, portanto o confronto deles com Fátima é ambíguo porque, de alguma maneira, eles estavam à espera de um fenómeno como Fátima.

No tempo em os homens viravam às costas à Deus, Fátima tornou-se uma janela de esperança?

Numa época em que, por exemplo, vão começar na sociedade portuguesa conversões espectaculares de intelectuais, materialistas e republicanos ao catolicismo.

Começa obviamente com António Sardinha e alguns dos integralistas lusitanos. Sardinha era um militante republicano jacobino e converte-se ao catolicismo e à monarquia. Outro: Alfredo Pimenta. Também temos anarquistas, como Manoel Ribeiro, que se convertem e antigos protagonistas muito célebres da cultura radical ateia do século XIX, caso de Gomes Leal, Guerra Junqueiro, que também se aproxima bastante, e Leonardo Coimbra, que se torna também católico mais tarde. Aliás, isso também acontece em França nessa época. Isso tem a ver obviamente com a guerra. Sabemos, até por outras fontes, como a actividade das paróquias, que há um regresso do catolicismo nesses anos. Essa procura de um sentido para as coisas... Mas é um catolicismo diferente daquele que existiu no século XIX.

Mais lúcido? Mais inteligente?

Já não é uma igreja que quer ser uma igreja de Estado, é uma igreja que quer ser uma igreja da sociedade. É uma igreja que não quer ser uma igreja do clero, mas quer ser uma igreja dos leigos, quer voltar a ser uma comunidade. E isso é algo novo.

Nos anos 20 e 30 o catolicismo reorganiza-se à volta desse novo centro que é Fátima. Fátima traz uma mensagem para Portugal, para a Europa, isso interpela os portugueses, e assim que é trabalhado o fenómeno depois e assimilado. Alguns republicanos tinham dito que era a antiga Igreja a tentar usar a superstição popular para voltar a adquirir uma influência que não tinha. Isso é basicamente não perceber absolutamente nada de Fátima porque é uma nova Igreja, uma nova religiosidade popular e é tudo novo em Fátima.

De repente, Fátima também faz parte dessa tentativa de reconciliação dos portugueses divididos. Na prática, Fátima vem num momento de esgotamento das várias mensagens, dos vários projectos políticos, como uma alternativa a tudo isso, um factor de unidade do país, de reflexão do país. É uma mensagem fortíssima.

Como vê Fátima 100 anos depois? Continua desafiante na sua vitalidade?

Claro, continua desde 1917 o maior fenómeno de massas em Portugal. A peregrinação é um fenómeno que não tinha precedentes com aquela dimensão, que vai aumentando dentro do país ao longo do século XX e que vai adquirindo cada vez mais uma repercussão europeia e mundial. É um dos grandes fenómenos mundiais que ocorrem em Portugal no século XX e ainda continua a ocorrer. Inspirou populações e movimentos noutros países, como a Polónia, na resistência ao comunismo nos anos 80.

É algo que ainda não foi colocado talvez na narrativa histórica da maneira que merece por receio de alguns porque não querem parecer apologéticos, outros provavelmente porque não querem parecer hostis. Dentro de mais anos, quando as pessoas estiverem mais à vontade, vão estranhar isso não ser parte central da narrativa do país, pois é o maior fenómeno de massas em Portugal, a concentração de pessoas, a mobilização, a devoção são algo impressionante, independentemente da posição pessoal. Somos desafiados a trabalhar esse fenómeno como historiadores, independentemente das crenças pessoais.

Um século depois ainda há muito para aprofundar?

Cem anos depois, estamos no começo de perceber o que representou, o que representa e o que ainda pode representar. É algo que não pode ser apagado da vida portuguesa, da história portuguesa.

Enquanto historiadores, estudamos porque não podemos ignorar. Isto é como um elefante na sala. Obviamente, seria como descrever uma sala sem nunca descrever o que é um elefante na sala. Fátima é um dos grandes fenómenos de Portugal no século XX. Temos de olhar para ele e perceber. Há muitos pontos de vista, há muitas interpretações possíveis. A documentação está disponível, portanto é trabalhar. Escreveram-se e vão-se escrever muitos livro, é algo fascinante, uma dimensão fascinante da história contemporânea portuguesa.