Pascoal só não é português no BI. Arrisca-se a ser expulso para Angola
14-03-2017 - 15:23
 • João Carlos Malta

Muitos dos que nasceram depois de 1981, em Portugal, sem que um dos pais seja português vivem há décadas sem ter a nacionalidade portuguesa. Estão privados de direitos básicos como ter um contrato legal ou ter uma conta bancária. A discussão voltou ao Parlamento, mas para alguns, como Pascoal, poderá ser tarde demais.


Pascoal nasceu há 27 anos no Hospital da Estefânia, em Lisboa. É filho de pais angolanos. Nunca viveu noutro país que não fosse Portugal. Aliás, jamais saiu de cá. Mas não é português. Angola só conhece de imagens.

Até há pouco tempo tinha-se safado com uma cópia da certidão de nascimento, que traz sempre consigo, ou com o cartão das vacinas. Sempre chegou para a vida que fazia. Mas deixou de ser suficiente. Agora está em contagem decrescente, que começou no dia em que perto do bairro do Zambujal, na Amadora, onde mora com a companheira, a polícia lhe pediu a identificação.

Ele não tinha. E daquela vez foi a vez. O Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) deu-lhe 60 dias para apresentar um documento válido, ou seja, um passaporte com uma fotografia.

De um dia para o outro, começou a sentir a corda no pescoço e a iminência de ter de ir para Angola, um país que não conhece.

“Tenho um mandato de expulsão, querem-me mandar para um sítio que nem conheço, em que não tenho ninguém. Vou chegar lá e fazer o quê? Não conheço ninguém. Porra, é assustador”, sublinha Pascoal.

Ele é um dos muitos jovens que nasceram em Portugal depois de 1981 e que por os pais serem estrangeiros não tiveram direito à nacionalidade portuguesa. A lei desse ano, assinada pelo primeiro-ministro da época, Francisco Pinto Balsemão, passou a dar mais valor ao critério parental e menos ao do país em que se nasce. Balsemão não quis responder às questões da Renascença.

Desleixo, crime e um obstáculo difícil de ultrapassar

A história deste jovem mistura algum desleixo próprio, a dificuldade dos pais em regularizar a situação e uma descida ao submundo da criminalidade, que o levou à cadeia.

Pascoal explica: “Sempre que ia tratar dos documentos com o meu pai, não conseguíamos porque ele tinha o passaporte caducado. Ele é angolano e sempre que era para tratar da minha identificação não dava.”

“Também houve desleixo meu. Nunca fiz um grande esforço de parar e pensar: ‘Pascoal, documentos primeiro’. Andei só na vida obscura”, acrescenta. A passagem pela prisão não lhe permite agora requerer a nacionalidade portuguesa. É a lei que o diz.

Como fazer um miúdo de 10 anos entender?

O caso de Pascoal está longe de ser único. João Semedo, ou Johnson como é mais conhecido, lidera uma academia no bairro do Zambujal, na Amadora, onde organiza actividades e acompanha crianças e adolescentes de cinco bairros do concelho, entre os quais alguns dos mais problemáticos, como o 6 de Maio ou a Cova da Moura.

Johnson aponta a questão da nacionalidade como o problema central destas comunidades. Ele dá o exemplo das seis equipas de futsal que a Academia Johnson Semedo tem a competir para dar casos concretos.

“Tenho miúdos com nove e dez anos que nasceram cá, mas são estrangeiros e não podem jogar futebol. São considerados estrangeiros. Alguns têm problemas cognitivos e de comportamento, e o futebol é a maior ferramenta para que pudéssemos fazer alguma coisa. E, muitas vezes, temos de lhes dizer: ‘Tu podes treinar mas não podes jogar’”.

Eles entendem? “Como é que entende? Tenho miúdos a chorar. Isto é uma lei que não pode existir”, reivindica Johnson.

E continua a exaltação acerca do que rotula como um absurdo. “Nasceram e vivem em Portugal, por que é que hão-de ser diferentes? Por que é que não podem ser iguais aos outros? Isto é de gritos."

E ilustra com um caso concreto. “Tenho aqui o João, que é infantil. Quando acabar a época, o miúdo não pode jogar. Isto porque tenho de traduzir os documentos do pai em inglês, tenho de levantar os documentos não sei do quê, tem que ir para a FIFA. Uma parvoíce, o que o miúdo quer é só jogar à bola e ser feliz”, argumenta.

Johnson defende ainda que estas regras têm como consequência a potencial marginalização de crianças. “Isto deixa os miúdos com as CPCJ [comissões de Protecção de Crianças e Jovens] à perna e encaminha-os para a delinquência, por causa da parvoíce, de uma burocracia”, reforça.


COMO MUDOU A LEI DA NACIONALIDADE EM MEIO SÉCULO

Ser português ou não? O que é preciso? Antes de mais, é importante saber quando se nasceu para poder responder à questão.

1959-75: Bastava ter nascido em Portugal ou numa das ex-colónias.

1975: A descolonização retira a nacionalidade aos africanos. Já os que nasceram em Macau, Goa, Damão e Diu mantiveram o direito.

1975-81: Muitos dos que vieram das ex-colónias para Portugal e mantiveram a nacionalidade. As crianças dos que tiveram filhos em Portugal nesse período também eram consideradas portuguesas.

A partir de 1981: A nova lei, aprovada pelo governo liderado por Francisco Pinto Balsemão, diz que já não basta nascer em Portugal. É necessário ser filho de pai ou de mãe portuguesa.


Os perigos que uma lei pode ter

Por defender que este é um problema real e que afecta um grupo relevante de pessoas, o Bloco de Esquerda quer alterar a lei. A discussão já começou.

“A proposta é a de dar prevalência ao direito do solo, ou seja, que quem nasce em Portugal tenha a nacionalidade portuguesa. O elemento central desta iniciativa legislativa é a de que haja uma acentuação deste critério”, explica o deputado bloquista José Manuel Pureza.

“Há casos de injustiça para as pessoas que têm a vida profundamente perturbada do ponto de vista de acesso a direitos, de documentação, de elementos essenciais que decorrem do facto de ficarem numa espécie de limbo em termos de nacionalidade”, argumenta Pureza, acrescentando que há quem passe a ter “uma relação artificial com um país com quem nunca teve nada a ver a não ser o facto de os pais lá terem nascido”.

A proposta do BE e uma outra do PSD, que visa a atribuição da nacionalidade à terceira geração de emigrantes no estrangeiro, estiveram em debate, tendo descido à comissão de Assuntos Parlamentares.

A expectativa de Pedro Delgado Alves, do Partido Socialista, é a de que ainda nesta sessão legislativa seja aprovada uma nova lei da nacionalidade.

Delgado Alves deixa, no entanto, algumas reservas às ideias do Bloco e espera que o texto final seja mais equilibrado. “O ‘jus solis’, nascimento no território, como única forma de aquisição da nacionalidade é desequilibrado. Não tem em conta elementos que também deviam estar ponderados na legislação, como saber a que título a pessoa nasceu no território. Caso contrário, acabaria por apanhar as pessoas que, fortuitamente ou apenas por estarem em deslocação e em turismo, nascessem por acaso em território nacional”, aponta.

O socialista defende ainda que a proposta do Bloco não leva em conta a existência de movimentos migratórios não lícitos que procuram chegar ao país no final da gestação só para assegurar o nascimento em Portugal de alguém, “com riscos para a mãe e para as crianças”.

Pureza mostra abertura para que o processo seja aberto na discussão, mas argumenta que os movimentos migratórios que o PS invoca são “a excepção” e não “a regra”.

Delgado Alves defende que a lei actual já é bastante abrangente e permite a naturalização de forma relativamente fácil. Pureza contra-argumenta que estes jovens não deviam ter de se naturalizar: serem portugueses devia ser um direito.

O socialista concede, no entanto, que na lei actual “a análise de um processo demora demasiado e o preço [250 euros] torna-o proibitivo e desmotivante".

Nas teias da burocracia

Johnson sublinha este ponto: o processo é muito burocrático. “Vamos a uma junta de freguesia pedir um papel que o SEF pede. Vamos lá, pedem-nos outro, apresentamo-lo e depois pedem-nos outro. Pedem papéis que não servem para nada. Para quê pedir o registo criminal de um país em que as pessoas nunca estiveram?”, exemplifica o dirigente da academia no bairro do Zambujal, na Amadora.

Além da documentação, há ainda a falta de preparação, segundo Johnson, por parte dos técnicos que tratam estas matérias.

“Não pescam patavina daquilo e têm uma arrogância tão grande. Não têm paciência para explicar como as coisas funcionam. Tive pegas com dois senhores e uma senhora que trabalham lá, por causa disso. Disse-lhe que os filhos dela precisam de comer como os meus e que o que quero é trabalhar para dar de comer aos meus filhos. Nada mais”, diz.

Johnson também já passou por este processo. Ele nasceu em São Tomé em 1972, num período em que quem nascia nas ex-colónias do Ultramar era automaticamente português. Nunca renovou a identificação até a “vida de pistoleiro”, feita de vários assaltos, o ter levado à prisão. A identificação caducou. A lei não o deixava renovar depois de ter estado detido.

Saiu há 12 anos, deixou a droga em que se viciou e agarrou as oportunidades de emprego para depois casar e ter quatro filhos. Até criar uma academia para ajudar os jovens que vivem nos bairros sociais. Um indulto presidencial deu-lhe a possibilidade de há um ano ter um Cartão de Cidadão. Ele é um caso de sucesso, mas tem consciência de que é uma excepção.

“A malta quando se trata de presos quer é que eles se lixem, são bandidos, o lugar deles é na cadeia. Sendo ‘black’ [preto], eles vão dizer: ‘Vai, mas é para a tua terra’. Como me foi dito a mim várias vezes”, conta.

Johnson critica a lei que retira a nacionalidade a quem tem problemas com a justiça. “Quem sai da prisão tem de se agarrar a alguma âncora e esta malta tem os filhos, mas depois de um ou dois meses cá fora perdem a motivação e pensam: ‘Eu vou ser pistoleiro porque tenho de comer.’ As coisas começam a apertar de uma maneira… O Estado tem de ver o que está a fazer, uma coisa é dizer 'demos e tu não quiseste', outra é não dar nada e depois falar dos números da criminalidade”, garante.

O medo da expulsão

Pascoal sente essa marginalização desde sempre. “Prejudica-me em tudo, como é que vou ser músico, se nem tenho documentos? Como é que vou trabalhar? Como vou criar os meus filhos? Como é que vou ter dinheiro nos bancos? Eu nasci cá, mas é como se não tivesse nascido”, constata.

Mas como é que esta situação chegou onde chegou e com tantos jovens a serem privados de direitos? A título pessoal, José Cesário, ex-secretário de Estado das Comunidades do governo PSD/CDS, defende que a razão é a mesma pela qual “durante décadas e décadas os portugueses foram obrigados a abdicar da nacionalidade portuguesa em termos administrativos”.

O bloquista José Manuel Pureza também não tem explicação lógica, mas diz que a causa foi a da “aceitação ao longo deste tempo de uma outra filosofia, de outra lógica, a dos laços de sangue”.

Enquanto a nova lei procura no Parlamento o consenso para um texto final que traga luz a quem procura resgatar direitos que a lei de 1981 subtraiu, o tempo não pára de contar para Pascoal.

À medida que se vão esgotando os 60 dias que lhe deram para apresentar um documento, o medo aumenta na mesma proporção das perguntas que lhe ecoam na cabeça.

“Querem-me mandar para onde? Para a terra dos meus pais. Vou e encontro lá quem? Os meus avós? Os cadáveres?”