A miopia da distância
07-03-2018 - 06:30

Paradoxalmente, quanto mais o mundo se globaliza, mais fragmentado e local ele se torna.

Dizem-nos que vivemos num mundo globalizado, em que a instantaneidade da informação nos faz sermos cidadãos interessados e ativos nas questões relevantes de qualquer ponto do globo.

O século XXI, acelerado pelas redes sociais, é pós-“qualquer coisa”: pós-moderno, pós-nacionalista, pós-europeu, pós-ocidental. E deve ser, para todas as consciências bem-pensantes e fraturantes, o tempo de grandes causas politicamente corretas, que caem sobre a espécie humana não conhecendo continentes ou fronteiras, países ou comunidades sociais específicas – salvo para os/as estigmatizar aos olhos de uma maioria do tamanho do mundo. Somos, por isso, bem capazes, ou para tal mandados, de estampar numa t-shirt “Je suis…”, para estarmos em sintonia com a humanidade, ao mesmo tempo que passamos sem parar pelo mal ou pela miséria, muito concretos, que estão à porta da nossa casa.

Contudo… parece que não é bem assim. Reagindo contra a escala abstrata da globalização, os nacionalismos estão de volta, os populismos têm agendas e alvos mais pequenos e locais, e do turbilhão de notícias que nos entra pela vida e pela casa adentro, trazido pelos media, já só nos interessamos pelo que está mais próximo de nós, pelo que nos afeta ou pode afetar, pelo que nos diz acerca do pequeno lugar geográfico e mental de cada um. Paradoxalmente, quanto mais o mundo se globaliza, mais fragmentado e local ele se torna. Chamemos a este fenómeno a miopia da distância: para o bem, nuns casos, para o mal, noutros, já não vemos, ou não queremos ver, o que nos está (e é) longe.

Considere-se o exemplo do terrorismo. Em 2017, o mundo foi assolado por c. 330 atentados terroristas, que causaram mais de 2.000 mortos. 97,5% destes atos bárbaros e 96% das suas vítimas registaram-se fora do chamado Ocidente. Neste (a Europa e a América do Norte), morreram apenas – um “apenas” relativo – 85 pessoas, no Canadá e nos EUA, em São Petersburgo, Estocolmo, Manchester, Londres e Barcelona. O cidadão europeu médio recorda com pesar algumas destas mortes. Mas quem, no lado confortável do mundo, sabe e tem a devida consciência que em maio de 2017 morreram 150 pessoas na explosão de um camião bomba em Cabul, em outubro 500 pessoas num atentado contra um hotel e um mercado em Mogadíscio, ou em novembro mais de 300 pessoas desfeitas por um suicida numa mesquita sufista do Sinai?

Hannah Arendt definiu um dia o totalitarismo nazi e o holocausto por ele perpetrado como a “banalização do mal”. É história? Ou é o presente, quando todas as noites jantamos diante do televisor que transmite imagens cinzentas dos escombros de Ghouta, o subúrbio mártir de Damasco, ou vermelhas, dos corpos ali ensanguentados? É “um inferno na terra” a que urge “pôr cobro”, disse, indignado, o Secretário Geral da ONU. Sem dúvida. Mas como será possível pôr a “ocidental” ONU de acordo para um mandato que faça intervir uma coligação internacional na Síria, destinada a liquidar a barbárie e a repor a normalidade? A II Guerra Mundial durou longos seis anos – toda a gente o sabe.

A guerra na Síria já completou sete anos (2011-18), causou 450.000 mortos e 4 milhões de refugiados, e já há quem lhe chama “a porta de entrada para a III Guerra Mundial”. Só em Ghouta, nos últimos 12 dias, morreram 600 pessoas e 2.000 ficaram feridas: são 50 óbitos diários, uma média superior (!) à dos soldados norte-americanos mortos no pior ano (1968) da guerra do Vietname. Mas quem é que quer saber – entre os que podiam fazer algo para acabar com a carnificina – de Ghouta, de Damasco, da Síria ou daquelas partes do globo onde o terrorismo domina o dia-a-dia? De que serve a globalização, se vivemos limitados pela miopia da distância?