Presidente da ​Cáritas. "Há menos desemprego, mas as famílias ainda não saíram da pobreza"
12-03-2017 - 09:27
 • Ângela Roque

É o alerta feito por Eugénio Fonseca no arranque da Semana Nacional da Cáritas, este ano centrada na Família.

“Família Construtora da paz” é o tema da Semana da Cáritas que começa este domingo, 12 de Março, e se prolonga até dia 19, o Dia Nacional da Cáritas. Pelo meio decorrerá o peditório nacional, que em cada localidade reverte para a respectiva Cáritas diocesana. São 20 no país e asseguram, através de várias valências, diversas respostas sociais. Dão, para além disso, ajudas directas, pagando despesas correntes como rendas, água, luz e propinas a muitas famílias.

Em entrevista à Renascença, Eugénio Fonseca garante que, apesar da redução do desemprego, a degradação dos salários faz com que muitas famílias não tenham ainda saído da situação de pobreza em que a crise as colocou. O que ganham não chega para as despesas correntes, por isso os pedidos de ajuda continuam a aumentar.

O presidente da Cáritas Portuguesa espera também que esta semana ajude a reflectir sobre tudo o que diz respeito à família, que, defende, devia ter, pelo menos, uma secretaria de Estado.

Por que é que diz que a família não está a ser defendida como devia, em termos políticos?

A família hoje está cada vez mais sujeita a fragilidades. Por que é que aumenta a violência doméstica? Por que é que há desagregação familiar? Por que é que hoje a Cáritas se confronta com tantos problemas sócio-económicos das famílias? Temos de perceber as causas.

Uma delas será a crise económica.

A causa não se reduz apenas à dimensão económica e financeira, está no modelo civilizacional que temos. Há quem diga que se perderam valores. Não, os valores existem, há valores que são imutáveis, irrenunciáveis. Mas temos uma crise de valores, há forças organizadas que querem pôr em causa a família.

Está a referir-se em termos políticos?

E em termos ideológicos. Há quem esteja interessado em destruir esta estrutura. A família está a ser agredida, não se está a dar à família as condições para que ela possa exercer a missão que lhe compete. Ora, a família é o núcleo central da sociedade. Por isso é que eu digo que a família merecia ao menos ter uma secretaria de Estado. Com peso político diferente, que pudesse depois ir acompanhando as políticas de todos os ministérios.

E essa sugestão já foi feita pela Cáritas?

Como é normal, sou solicitado para dar pareceres, emitir opiniões e fazer propostas, às vezes para programas político-partidários, aquando das eleições, legislativas ou autárquicas. E vem lá sempre essa questão, nunca a esqueço. Dizem-me que a família é uma área transversal que todos os ministérios devem ter sempre em presença na elaboração das opções de Governo, de política. Mas se não estiver alguém a monitorizar, a chamar a atenção, isso passa despercebido! Reconheço que é transversal e por isso até acho que essa secretaria de Estado devia estar na área da presidência do Conselho de Ministros, dependente do primeiro-ministro.

O peditório nacional é a grande fonte de receitas da Cáritas?

Das actividades não subsidiadas pelo Estado. Uma boa parte das Cáritas diocesanas até são IPSS que têm lares, creches, jardins-de- infância, e recebem aquilo que o Governo estipulou por acordo de cooperação com essas instituições e depois recebe uma parte dos beneficiários. Atenção: a lógica da Cáritas é esta, preferencialmente os pobres. Entre uma população de 70 crianças num jardim-de-infância, se 60 forem da classe média alta a Cáritas não está a cumprir o seu papel. Mas o Estado dá o mesmo ao filho do desempregado que dá ao filho do administrador de uma empresa, não há diferenciação positiva que devia existir na cooperação, e portanto tem que haver aqui uma sustentabilidade, porque depois há encargos com os trabalhadores. Eu não conheço o que se passa em todas as Cáritas, porque as Cáritas são autónomas, só respondem perante o seu bispo, mas tenho a certeza que todas estão a pagar aquilo que a lei manda.

E este peditório reverte em cada local para cada diocese?

É para cada diocese. Mas este peditório é só para aquilo que o Estado não comparticipa, pagar uma renda de casa em atraso, alimentação, electricidade, o gás, as propinas, para aí o Estado não dá.

Essas situações agravaram-se com a crise, mas mantêm-se neste momento?

Sim, e quero explicar porquê. Dizem que há um ligeiro crescimento económico em Portugal…

Quem está no terreno, como a Cáritas, tem outra percepção?

Efectivamente cresceu o número de postos de trabalho, já não é tão grande o fluxo de desemprego. E é verdade que o actual Governo retomou algumas medidas de protecção social que tinham sido cortadas, como o Rendimento Social de Inserção, o Complemento Solidário para Idosos, o abono de família, mas não quer dizer que a situação esteja melhor.

Continuamos a ter uma coisa que é escandalosa: estão a aparecer mais postos de trabalho, mas as pessoas que estão a aceder a esses postos de trabalho não estão a ficar fora da pobreza. Porquê? Porque os salários que recebem são salários de miséria e os encargos continuam a ser os mesmos que eram porque está-se a pagar o ordenado mínimo como regra geral. Ou seja, não basta dizer que se cria trabalho.

Quem procura ajuda na Cáritas está muitas vezes empregado, mas não consegue pagar despesas?

Exacto. Este crescimento económico não quer dizer que a Cáritas tenha ficado mais aliviada nas ajudas que tem de dar. Pelo contrário, quanto mais tempo as pessoas permanecem na pobreza, a chamada pobreza persistente, mais necessidades vão tendo. Até aqui podiam procurar a Cáritas uma vez mês, uma vez de dois em dois meses, mas agora há famílias que estão quase todas as semanas a pedir ajuda à Cáritas. Então, precisamos de mais meios. E vou aqui recordar um problema grave que o país tem, estou farto de falar nele, e não vejo medidas – os desempregados de longa duração, que aumentaram 38% no último trimestre.

É para essa ajuda directa às famílias continuar a ser dada que é fundamental este peditório?

Primeiro, quero deixar um agradecimento. Têm sido muitos os pedidos que temos feito nos últimos anos e é verdade que são muitas vezes os mais pobres que ajudam os pobres. O povo português tem sido muito generoso e ainda há duas semanas entregámos a primeira casa dos incêndios de Agosto. E daqui a mais um mês ou dois iremos entregar as outras casas. São perto de 18 casas que vão ser construídas pela generosidade do nosso povo e o povo tem de saber onde é que o dinheiro foi empregue.

Gostava que a comunicação social estivesse tão presente com a mesma força que esteve quando foi a tragédia dos incêndios. Portanto, o apelo que eu faço é: nesta Quaresma quem tem o hábito de tomar a bica que renuncie a uma bica e doe essa verba, quem tem o hábito de fumar que dê o equivalente a meio maço de tabaco. O bocadinho de muitos será muito importante face à carência de tantos. E também quero lembrar aos católicos que no próximo domingo, dia 19, o que derem no ofertório das missas desse dia é também para a Cáritas.


[Entrevista realizada antes da divulgação da abertura de um inquérito do Ministério Público à Cáritas Diocesana de Lisboa por alegada burla qualificada por parte do seu presidente, José Frias Gomes, que nega todas as acusações.]