Não há vacina para o autismo
21-04-2017 - 06:30

“Eu levei muitos anos a abrir os olhos e o coração. Mas eu sou estúpido e lento. Vocês são melhores. Eu sei que são”.

Temos a tendência para ver os assassínios através da caricatura do “monstro”. Ainda há dias, o assassínio de Barcelos foi descrito nestes termos luciféricos. Trata-se de uma sobrevivência narrativa ou moral: queremos à força separarmo-nos daquele indivíduo, queremos traçar uma linha de fogo entre a nossa “humanidade” e a “monstruosidade” dele; queremos puni-lo e, em consequência, transformamo-lo num Lúcifer.

O curioso é que fazemos o oposto com pessoas frágeis como o autista, por exemplo. Queremos ajudá-lo e, em consequência, transformamo-lo num querubim genial; como se torna numa vítima devido à sua incapacidade social, queremos premiar o autista com uma inteligência sobre-humana, queremos que ele seja o nosso Spock. Mais uma vez, trata-se de um esforço desesperado e ilusório; não queremos o estoicismo de Eclesiastes, queremos dar já uma moral humana à desordem do mundo, queremos suavizar a injustiça inscrita nas coisas e, desta forma, procuramos redistribuir a justiça e o bem através destes mitos sobre assassínios e deficientes.

Estas ilusões são uma espécie de vacinas morais que nos protegem do confronto com a realidade: não, o assassino de Barcelos não é um “monstro”, é um homem como nós; uma curva mal feita na vida pode atirar-nos para aquele nível de maldade. Não, o autista não é um génio. É uma pessoa como outra qualquer.

Esta lei das compensações que esquece Eclesiastes foi o que me veio à cabeça durante a leitura de uma confissão poderosa de Valério Romão (“Da compreensão simplificada do autismo”) publicada no jornal “Hoje Macau”. Este escritor tem um filho autista e conta aqui a forma como lidou com a surpresa. Ao início, recorrendo à tal lei da compensação que nos dá a ilusão de que controlarmos a máquina do mundo, Romão olhava para o filho como todos nós olhamos para a personagem de Dustin Hoffmann em “Rain Man” – o autista só pode ser o tal génio matemático. Sucede que o filho de Romão (como a esmagadora maioria dos autistas) não encaixa nesse cliché benevolente. Não, os autistas “não são todos enviados cósmicos sob a forma de anjos”. Dessa forma, foi necessário “fazer o luto da criança idealizada” para que a criança real encontrasse o seu espaço.

“Eu levei muitos anos a abrir os olhos e o coração. Mas eu sou estúpido e lento. Vocês são melhores. Eu sei que são”, diz o autor do romance “Autismo” (agora reeditado).

Ora, se Romão foi estúpido e lento, foi estúpido e lento como eu seria, foi estúpido e lento como Job: porquê eu? Porque é que isto tinha de acontecer ao meu filho? Porque é que a linha do acaso cósmico tinha de encontrar a linha do meu filho? Porque é que o desígnio inescrutável de Deus tinha de traçar uma linha perpendicular sobre a linha do meu filho? Superar esta sensação de injustiça para assumir a franqueza de Eclesiastes não é fácil, mas Romão chegou lá nesta confissão: “há que ter coragem de nos despirmos de todas as explicações reconfortantes para o fenómeno da deficiência”.

Não, isto não é uma vacina narrativa, não estamos no campo dos Andrew Wakefieds literários que elaboram fraudes e falácias fofinhas. Pensar e escrever é dar murros no estômago, não é dar palmadinhas no ombro; escrever não é fazer o banho da cobra do “auto-ajuda”, é chegar a Eclesiastes. Não há vacinas pra vidinha.