A Letónia venceu a crise com “muitas lágrimas e muito suor”
31-12-2015 - 14:56
 • Paulo Ribeiro Pinto , em Riga, Letónia

Muitos vêem no pequeno Estado báltico um exemplo de como a austeridade pode funcionar mesmo sem moeda própria. A Renascença foi a Riga perceber como o “tigre báltico” voltou a rugir.

Jana Ezerina recebe-nos na sua loja na zona nobre da cidade de Riga, a capital da Letónia. Abriu a sapataria no dia 25 de Abril de 2008. Sete meses depois, o país entrava numa profunda recessão e pedia ajuda ao Fundo Monetário Internacional (FMI) e à União Europeia (UE).

“Felizmente, na altura, não era o meu único emprego e consegui manter a sapataria durante os três anos da crise. E quando conseguimos, finalmente, ultrapassar a crise estávamos em 2011/2012 e percebi que era possível, que conseguíamos ultrapassar e sobreviver e mesmo crescer. Mas, claro que foram muitas lágrimas e muito suor”, conta Jana Ezerina, lembrando os meses em que tinha apenas um ou dois clientes na loja.

O negócio começou a crescer a partir de 2013, mas com a crise do rublo russo desapareceram os turistas e também muitas vendas. Mesmo assim, a diferença já se sente.

“Actualmente estamos muito vulneráveis ao que se passa em todo o mundo. Por exemplo, a crise russa está a influenciar muito a economia da Letónia. Já não temos turistas russos a visitar o país. Há alguns anos os efeitos eram diferentes, mas no momento já não podemos dizer que estamos sob algum tipo de pressão ou recessão económica, como há cinco ou seis anos”, afirma Jana, que durante alguns anos acumulou a loja de sapatos com o trabalho de relações públicas (hoje, faz um programa sobre moda na televisão e na rádio).

Na praça central de Riga, na zona velha da cidade que é Património da Humanidade, também se nota a falta de turistas russos, sobretudo nesta época de Natal.

Dos esteróides à sopa

A Letónia, um país de pouco mais de dois milhões de habitantes (menos do que a Área Metropolitana de Lisboa), passou em 2008 e 2009 pela pior crise económica e financeira dos últimos 20 anos.

A recessão atingiu o país arrastado pela crise do mercado imobiliário norte-americano, que congelou o crédito e secou as fontes de financiamento. O pedido de ajuda internacional ocorreu já no final de 2008. O FMI e a UE emprestaram 7,5 mil milhões de euros.

Andris Strazds, economista-chefe do banco central da Letónia, tem uma explicação simples para a crise que atingiu o país: “Podemos alcançar o sucesso profissional a curto prazo no desporto de alta competição se tomarmos uma grande quantidade de esteróides ou substâncias que proporcionam maiores músculos e permitem mais velocidade. Mas, por norma, isso não dura muito tempo. A certa altura, os esteróides são cortados e segue-se um período doloroso de desqualificação. Quando regressa, o atleta compete tendo por base sopa e batidos de proteínas e talvez muito frango. Os resultados não serão tão bons como quando estava a esteróides, mas serão mais sustentáveis.”

O Produto Interno Bruto (PIB) registou uma quebra superior a 17% em 2010 – um valor gigantesco para um país que tem um PIB que ronda os 22 mil milhões de euros. O risco de pobreza disparou para valores superiores a 19%, muitas empresas fecharam portas, a taxa de desemprego ultrapassou os 20% (hoje ronda os 9%) e a emigração em massa instalou-se, sobretudo entre os jovens qualificados. Entre 2008 e 2013, a Letónia perdeu perto de 160 mil pessoas.

Kaspars Tim foi um dos muitos a sair do país. Instalou-se em Londres durante sete anos. Regressou recentemente à Letónia para dirigir a sucursal de uma tecnológica britânica.

“Pertenci à primeira grande vaga de emigração. Fui para Londres onde estive perto de sete anos e agora regressei. Já regressaram quase todos meus amigos letões que foram para Londres. Emigraram, adquiriram experiência e regressam à Letónia para assumirem posições de relevo em grandes empresas que, de outra forma, não conseguiriam”, conta este programador informático de 30 anos.

Exportar, exportar, exportar

A emigração não foi, contudo, a opção de todos. Ou, pelo menos, a saída da Letónia.

Raivo Vainovskis viveu quase 30 anos na região rural da Letónia, em Madona, uma pequena cidade com pouco mais de 9 mil habitantes, onde não tinha grandes oportunidades de emprego. Decidiu, então, ir viver para Riga, onde agora trabalha numa pequena empresa que produz sintetizadores modulares analógicos.

A Erica Synths tem quatro trabalhadores e exporta toda a produção. O fundador, Girts Ozolins, autointitula-se “visionário” no seu cartão-de-visita. Acredita que o futuro da Letónia está nas exportações.

Com esta visão, Girts Ozolins deixou a direcção de uma agência de publicidade para apostar na produção de sintetizadores. “Temos grandes ambições para exportar para todo o mundo e acho que aos poucos vamos conseguir”, acredita o “visionário”.

É, de facto, nas exportações que a Letónia assenta agora o crescimento económico. O PIB cresce a um ritmo próximo dos 3% ao ano (um dos mais elevados de toda a União Europeia), mas ainda longe dos níveis da primeira metade da década do século, em que chegou aos 10%. Mesmo assim, os dados apontam para uma forte recuperação e a Letónia tem sido apontada como exemplo para outros países do euro, em particular a Grécia.

O ex-ministro das Finanças Andris Vilks, que foi responsável pela implementação do programa de ajustamento, considera que há lições a tirar, sobretudo pelo perigo de uma fadiga de austeridade.

“Podemos olhar para o caso da Grécia: nós sofremos durante dois ou três anos. A Grécia já está numa recessão há sete anos. Podemos adiar os problemas, obter ajuda adicional, mas as pessoas acabam fatigadas. Sete ou oito anos com um declínio da economia, a subida do desemprego, etc…. Julgo que é demais. É melhor sofrer durante dois ou três anos do que estar sete ou oito anos em sofrimento”, afirma o homem que cuidou das finanças letãs entre 2010 e 2014.

Produtividade foi o segredo

O exemplo da Letónia como modelo para outros países em crise não é consensual, apesar de, em muitos aspectos, a origem dos problemas ser da mesma natureza, diz Andris Strazds, do banco central do país.

“Julgo que, em termos muito simples, a Letónia estava a viver acima das suas possibilidades. Tivemos um crescimento significativo do crédito para a construção e o imobiliário e quando os mercados financeiros ficaram congelados, depois da queda do Lehman Brothers, apesar de com alguns meses de atraso, este tsunami acabou por atingir a Letónia. Foi bastante devastador para o país”, recorda Andris Strazds.

Acrescenta que há sempre lições a aprender com os pequenos países: “Se olharmos para as pequenas economias da Zona Euro julgo que podemos aprender algumas lições. E podemos comparar a nossa experiência com o caso grego. No caso da Letónia o factor da velocidade foi muito importante, coisa que na Grécia faltou. Houve sempre uma tentativa de adiar as reformas: ‘Fazemos agora um pouco e depois logo se vê. No próximo ano fazemos mais algumas coisas.’ Simplesmente não funciona assim.”

Como em Portugal, o governo de centro-direita da Letónia assumiu como seu o programa de ajustamento. E também não tinha capacidade de desvalorizar a moeda porque estava indexada ao euro. O país optou pela chamada desvalorização interna, mas tentando preservar os rendimentos. E conseguiu-o através do aumento da produtividade.

“Preservámos os rendimentos para quem ficou empregado, mas claro que o efeito a curto prazo foi uma taxa de desemprego significativa. Mas, para um país que está a tentar aproximar-se do clube dos países ricos da Europa ocidental, é melhor tentar aumentar a produtividade, mantendo os salários, do que preservar empregos com salários muito baixos”, defende o economista.

A Letónia teve também uma saída “limpa” e já conseguiu pagar 70% do empréstimo da União Europeia e a totalidade do empréstimo ao FMI, abandonando no início deste ano o período de vigilância pós-programa.

“Fizemos mais do que o exigido pelo programa do FMI e fizemo-lo mais depressa: cumprimos todas as metas com melhor execução. Portanto, num período muito curto, reganhámos o respeito dos políticos, do FMI e também conseguimos emitir obrigações. Regressámos aos mercados financeiros e fomos muito bem-recebidos com grande interesse na procura”, diz Andris Vilks.

Tal como em Portugal, também houve um “enorme” aumento de impostos: a taxa máxima do IVA subiu de 18 para 21%, as contribuições para a Segurança Social aumentaram de 33 para 34,09%, aumentaram as taxas sobre os combustíveis e foram introduzidos novos impostos sobre imóveis. O ex-ministro das Finanças assume que a decisão mais difícil foi ter de despedir funcionários públicos.

Os medos dos políticos

O presidente da Câmara do Comércio e Indústria da Letónia, Aigars Rostovskis, espera que os impostos sobre imóveis desçam rapidamente. “São ainda muitos elevados para as empresas, não é fácil concorrer com outras empresas da região. Além disso, precisamos de um sistema tributário estável: não é fácil investir quando o governo altera os impostos de um ano para o outro. Esta questão é sobretudo grave no caso dos investidores estrangeiros”, diz.

Há, no entanto, ainda muito para fazer e Andris Vilks teme que nunca se consigam implementar reformas que ficaram pelo caminho.

“Por exemplo, na educação significaria menos professores, menos escolas. Fizemos muito, mas ainda é preciso ir mais longe nas universidades, no sistema de saúde. Precisamos, por exemplo, de introduzir um esquema obrigatório de seguros de saúde. As reformas regionais e o sistema judicial ainda estão longe do desejável, ainda há lentidão na justiça. Infelizmente, perdemos a oportunidade durante o programa de ajustamento, em que teria mais apoio público do que actualmente ou nos próximos anos. Julgo que se passa o mesmo em Portugal, Itália ou França”, afirma o ex-ministro.

E conclui: “Os políticos têm receio de fazer reformas profundas.”