"Inocentes podem pagar caro" o assalto a Mossul
18-10-2016 - 19:52
 • Inês Alberti, em Londres

Para Osamah Golpy, jornalista curdo no Iraque, Mossul não é só mais um episódio da guerra contra o Estado Islâmico, é o futuro do seu país.

Vinte e quatro horas se passaram no que parece ser a batalha decisiva pela reconquista de Mossul, uma das últimas grandes cidades iraquianas sob o controlo do autoproclamado Estado Islâmico.

A derrota do grupo em Mossul pode vir a marcar o início do fim do Estado Islâmico no Iraque. Mas a uma situação já de si explosiva é preciso juntar várias componentes inflamáveis, como as pretensões americanas, as diferenças entre xiitas, sunitas e cristãos, as aspirações dos curdos e o orgulho do exército iraquiano. No meio de tudo isto, um milhão de civis – pelo menos – cujas vidas estão em risco.

A partir do Iraque, o jornalista curdo Osamah Golpy, que trabalha na iraquiana Rudaw, falou com a Renascença sobre a ofensiva que pode mudar o futuro do seu pais e da região.

Qual e a importância desta ofensiva?

Muitos dizem que Mossul é importante para o Estado Islâmico porque foi onde o seu líder Abu Bakr al-Baghdadi declarou o califado, mas acho que o mais importante é saber porque é que ele escolheu Mossul em primeiro lugar? Baghdadi acreditava que a população de Mossul ia naturalmente apoiar o seu movimento, e teve razão. Mossul permaneceu o seu baluarte até este momento e prova disso é em parte a população que decidiu permanecer sobre o domínio do Estado Islâmico.

O outro ponto importante é que Mossul fica na parte mais Norte do pais, longe o suficiente das cidades xiitas do centro e sul do Iraque. Isto deixou o Estado Islâmico em Mossul praticamente intacto durante os últimos dois anos. Foi uma ideia de génio. Eles sabiam que Bagdade e Erbil [capital do Curdistão iraquiano] se “odiavam” demasiado para cooperar: enquanto os curdos foram suficientemente rápidos para chegar e menos de 30 quilómetros de Mossul, estes dois lados – Bagdad e Erbil – demoraram meses, senão anos, a chegar a um acordo sobre a operação em Mossul.

O que é que esta operação tem de característico?

A forca desta ofensiva está na sua fragilidade. A ofensiva em Mossul poderia ter começado muito antes se Bagdad e Erbil se dessem bem. Eu sei que os dois lados estão a interpretar o papel de bons companheiros nesta operação – o que em grande parte resulta da pressão norte-americana – mas, quando começarem a discordar sobre quem deve controlar que áreas, o mito por detrás da “parceria histórica” vai desaparecer.

Muitos curdos, segundo o que lhes foi dito pela liderança curda, acreditam que esta guerra – para além de derrotar terrorismo – está relacionada com a criação de um estado independente para o Curdistão, devido às suas pretensões históricas em Mossul e Kirkuk.

Esta exigência por parte dos curdos vai, obviamente, receber resistência de Bagdad. Um comandante curdo disse há tempos que a próxima guerra, depois do Estado Islâmico, pode ser entre os curdos e a milícia xiita. Portanto, alguns analistas acham que os curdos esperam uma nova guerra. E esta guerra será entre as forças peshmerga e o vencedor desta ofensiva entre o Estado Islâmico e as forças iraquianas.

E em termos da população civil? As pessoas estão a abandonar Mossul? Há mortos?

Cerca de uma dúzia de aldeias foram libertadas [desde o inicio da operação]. Segunda-feira nove aldeias foram libertadas pelas forças peshmerga, mais de três pelas forças iraquianas e terça-feira parece que mais nove que foram libertadas pelas forças iraquianas no sul de Mossul. Hoje [terça-feira] alguns civis estão a abandonar Mossul, mas em grupos pequenos. Não nos podemos esquecer que as forças iraquianas aconselharam a população a permanecer em Mossul. Até agora, não há notícia de mortes de civis.

Mossul pode tornar-se outra Alepo (Síria)?

Mossul não será outra Alepo por uma simples razão: a maioria dos ataques aéreos são liderados pelos Estados Unidos, e os EUA não querem má publicidade e certamente não permitiriam que os iraquianos fizessem o mesmo. Portanto, na pior das situações, iremos ver uma batalha de rua sangrenta dentro de Mossul. Se isso acontecer e a ofensiva demorar mais que o esperado, então as milícias xiitas podem tomar um papel mais relevante, o que levanta questões sobre violações de direitos humanos em grande escala.

Então a população neste momento está a salvo?

Os dois lados [da batalha] desconfiam da população civil. O Estado Islâmico porque se sente ameaçado, o que pode levar a execuções e prisões, e as forças que estão a avançar para a cidade porque sentem que as pessoas apoiam o Estado Islâmico – razão pela qual ficaram. Todas as forças iraquianas e curdas têm a sua própria “lista negra” com nomes de potenciais colaboradores do Estado Islâmico. A lista pode até conter alguma verdade, mas também pode levar a que inocentes paguem um preço elevado.

Qual a relevância dos Estados Unidos e de outras forças internacionais em Mossul?

Os americanos conseguiram organizar uma coligação improvável entre várias forças que não partilham quase nada excepto um inimigo comum. Mas como a experiência no Iraque nos tem mostrado, os americanos não conseguem transferir resultados no campo de batalha para o mapa político. Depois de todos os sacrifícios no Iraque, depois da invasão, não conseguiram assegurar um acordo estratégico para depois da retirada das suas forças. O Irão é um jogador muito mais relevante no Iraque e com imensa influência no país. Tem uma grande influência sobre a milícia xiita, o governo xiita em Bagdade e também tem alguma influência no Curdistão.

Estamos a falar de forças governamentais, curdas, sunitas, xiitas, cristãs… Depois desta operação vão ter que lidar umas com as outras. Quais são os riscos?

Não nos podemos esquecer que os grupos extremistas quase foram derrotados no Iraque antes da retirada dos EUA, mas a presença de um governo sectário em Bagdad acabou por dar origem ao Estado Islâmico. Tenho receio de que, com a presença de uma milícia xiita com poder, o ambiente pós-Estado Islâmico leve a outro conflito sectário muito pior do que já vimos. A menos que haja um acordo para uma administração descentralizada nestas áreas, o que poderia deixar os locais em controlo dos seus próprios assuntos, mas acho isto pouco provável.

Que bandeira veremos hasteada no centro de Mossul? A iraquiana, ou do Curdistão?

Os curdos anunciaram ontem que já fizeram a sua parte e que não vão avançar mais. Por isso serão os iraquianos, provavelmente, o exército iraquiano.