Já não há palavras para classificar o que se está a passar em Ghouta Oriental, na Síria, perante os nossos olhos embrutecidos. Daí que a nota em branco publicada pela UNICEF tenha pelo menos o mérito de o dizer, sem precisar de usar uma única palavra para pôr a nu uma realidade a que já assistimos vezes sem conta. Se mil fotos de meninos mortos ou em pânico com os milhões de palavras que lhes estão associadas não tiveram o mérito de abrir os olhos do mundo para o maior “massacre do século XXI”, não precisamos de lhes acrescentar nem mais uma palavra que seja.
Bashar al-Assad continua a ocupar a sua cadeira de poder. Manchada de sangue de milhares de inocentes de todas as etnias e credos. Sangue de bandidos e sangue de inocentes, mas sempre sangue e mais sangue. Uma cadeira de poder empoeirada pelas bombas de aliados e adversários que se vão sucedendo, numa chuva de amigos de ocasião. Ora Russos e iranianos, como nos bombardeamentos dos últimos dias, ora turcos, franceses ou americanos como aqui e ali foi acontecendo há quase uma década de guerra. Ora sírios contra sírios e curdos contra curdos. Numa guerra civil que não parece ter princípio nem fim. Assad resiste e permanece como um verdadeiro sempre em pé.
Em 1990 ninguém viu o que se estava a passar em Srebrenica. Fechámos os olhos ao que hoje lamentamos. Mas hoje é difícil perceber até que ponto um dos mais prósperos e tranquilos países da zona pode chegar de novo a um amontoado de escombros, onde nem os especialistas em geopolítica conseguem decifrar entre “bons” e “maus”. Tudo parece cruzar-se no medo das crianças, fixando as câmaras em espasmos de horror.
Aqueles meninos em fuga permanente desde que nasceram, estejam do lado que estiverem, com sorte estão apenas rodeados dos seus pais e mães ou do que ainda sobra de uma família alargada. Nos casos ainda mais terríveis, os seus companheiros de infortúnio são apenas sequestradores, assassinos, os sobreviventes que lhes mataram os pais e as mães, lhes levaram os irmãos para a guerra e fizeram das irmãs escravas sexuais. Pior é impossível imaginar.
Fome e sangue a rodos. A escorrer das poucas ambulâncias que ainda circulam nas estradas que de um minuto para o outro se transformam em cemitérios sem cruzes, sem crescentes, sem credo nenhum. Só na última semana em Ghouta Oriental foram seis os hospitais propositadamente bombardeados, tidos como alvos “legítimos” de uma guerra em que a legitimidade ou nunca existiu ou há muito que já não faz parte do léxico militar.
Rebeldes. É a palavra mágica para classificar tudo o que não seja Assad e as suas tropas. Rebeldes pode ser tudo o que mexe. E vistos lá de cima os rebeldes são simples formigas sobre as quais se despejam toneladas de explosivos (as temíveis bombas de barril carregadas de tudo o que possa aumentar ainda mais o seu potencial de morte!), bombas compradas um pouco por todo o lado.
Poucas vezes as indústrias de armamento venderam tanto a tantos. Se há indústria próspera é esta. Alemães, americanos, russos, franceses, e todos os vendedores das armas (que podem ser de tecnologia de ponta ou mera sucata para rearmar aqui e ali as milícias que resistem por instinto de pura sobrevivência). Todos a lucrar milhões com a morte dos outros. Guerras e mais guerras em nome de nada.
O ministro francês dos Negócios Estrangeiros pedia, ontem, ao Conselho de Segurança da ONU a convocação urgente de uma reunião que permitisse ao menos a declaração de uma trégua humanitária. Porque todos os ataques apenas parecem dar sinais de recrudescer ainda mais. Pior: sente-se a cada nova imagem que um novo massacre ainda pode estar para vir, quando Ghouta já não for uma região a Norte, nenhuma cidade ficar de pé e nem um menino em pranto restar entre os escombros.
As tropas de Damasco (as mesmas que não hesitaram em usar armas químicas contra os curdos tidos por rebeldes, ainda há cinco anos) que agora se aliaram aos curdos de Afrin para enfrentar as forças fronteiriças turcas dispostas a parar na fronteira qualquer veleidade autonomista, hão de surgir a atacar/ defender outra cidade ou região qualquer, em nome do eterno Bashar al-Assad.
E ele, com cada vez menos povo, continuará muito provavelmente em pé. Apresentando-se a muitos como o menos mau entre uma multidão de outros malditos. Em Ghouta ou se pára já com o massacre em curso ou daqui a dez anos estaremos a lamentar não ter acordado a tempo para travar esta nova Srebrenica.
A Humanidade aprende lentamente.