Eutanásia: não sabemos o que fazer com os idosos
11-05-2018 - 06:49

Este desencontro entre a técnica médica (que aumenta cronologicamente a vida dos idosos) e a moral familiar (que coloca o velho num canto) é a brecha da muralha por onde entra o veneno da eutanásia.

A eutanásia é uma ideia com imensa força, porque, apesar de sermos uma sociedade envelhecida, não sabemos o que fazer com a velhice. Quer na lógica do trabalho, quer na lógica do lazer, o velho é cada vez mais um estorvo. De forma irracional, o mercado de trabalho não aceita pessoas com 50 ou 60 anos. De forma amoral, a vida familiar é feita cada vez mais fora do perímetro dos avós. Quando se matam porque não querem ser “um fardo”, eles, os idosos, estão a seguir a lógica implícita da sociedade. A cultura chinesa e a cultura muçulmana têm os seus defeitos, com certeza, mas têm razão quando apontam o dedo ao culto da juventude que o Maio de 68 popularizou no ocidente. Esta divinização da juventude colocou a terceira idade num gueto. Às vezes, quando vejo lares de idosos, quando me lembro do lar por onde passou um dos meus avós, é mesmo essa a imagem que me assombra: gueto, um gueto de idosos abandonados porque não cabem na nossa fita-do-tempo.

Os idosos estão encurralados numa contradição entre a técnica e a moral. Por um lado, a nossa cultura científica criou as condições técnicas para o prolongamento da vida. Uma pessoa vive hoje mais duas, três ou mesmo quatro décadas do que o seu bisavô. Vacinas, medicamentos e técnicas cirúrgicas criaram uma barreira química que nos eleva muito acima do caos do estado da natureza. Este progresso médico é notável, mas tem contudo um lado negro, a distanásia, que é uma obsessão mefistofélica. Com maior ou menor grau de fanatismo científico, todos nós sentimos que a nossa técnica pode vencer a doença, neutralizar a dor e até domar a morte. Aliás, na cultura de Silicon Valley, os gurus da técnica (Thiel, Bezos) estão convictamente convencidos de que podem alcançar o caminho da imortalidade, ou seja, acham que podem alcançar o segredo dos Elfos de Tolkien, com uma vida sem envelhecimento.

Enquanto a nossa cultura científica criou mais tempo para os velhos, a nossa moral retirou os velhos das nossas vidas. A legalização da eutanásia no campo da técnica e da lei é precedida da eutanásia metafórica da figura da avó/avô. Os filhos e os netos estão num perpétuo ciclo de trabalho e divertimento que põe de lado os mais velhos, que ficam assim perante um dilema terrível: sim, vivem mais tempo, mas esse tempo extra é vivido na solidão. “Porque é que não vejo mais vezes os meus netos?”; “porque é que o meu filho não me vem ver?”. Chega a ser perverso: esticamos cronologicamente a vida dos idosos, prometemos-lhes um el dourado (mais tempo para viver) mas depois deixamo-los sozinhos nesse el dourado. O que devia ser uma utopia é na verdade uma distopia. E esta desproporção entre a utopia e a realidade só pode criar um desejo de suicídio e eutanásia. “Não estou aqui a fazer nada”. Os filhos e os netos são consumidos pelo trabalho, pela saída do trabalho às sete ou oito porque não se abdica do sagrado almoço com os colegas, pelas actividades extra curriculares, ele é o inglês, as explicações de matemática, o ballet, a ginástica, o karaté, a natação, ele é depois o fim-de-semana de festa em festa, de viagem em viagem, de divertimento em divertimento, ele é as férias programadas sem a presença dos avós porque é preciso ir a um dos sítios da moda, e não para o local de férias de sempre da família.

Este desencontro entre a técnica médica (que aumenta cronologicamente a vida dos idosos) e a moral familiar (que coloca o velho num canto) é a brecha da muralha por onde entra o veneno da eutanásia.