Morte natural, morte a pedido
12-05-2017 - 06:40

Na sua infância, a hubris racionalista carrega no botão do slow motion ou pause, procurando congelar o fluir do tempo; mas, já na velhice, carrega no botão fast forward, procurando de novo a falsa sensação de controlo.

Parece contradição, mas não é: a cultura que respiramos faz tudo para que evitemos a doença e a morte natural, mas, ao mesmo tempo, faz tudo para que aceitemos a morte a pedido. Contraditórios na aparência, os dois movimentos são na verdade as duas faces da mesma moeda: a hubris que recusa a existência de algo superior à vontade humana, a começar na morte. Nem a morte pode estar acima do intelecto do homem.

A revolta quimérica contra a morte natural é evidente numa série de características. Em primeiro lugar, temos o culto da alimentação saudável que já tem dezenas de subespécies que se digladiam entre si (fanáticos contra o açúcar, fanáticos contra o leite, fanáticos contra a carne, são fanáticos contra cereais). Esta obsessão com a comida atingiu níveis patológicos. Não conseguimos ter uma conversa sem ouvirmos “não deves comer isto ou aquilo”. Nos meios mais sofisticados, esta patologia é sublimada pelo culto da culinária, dos chefs, etc.

Para mim, esta cultura é depressiva e um tanto bárbara: se repararem bem, as revistas substituíram as recensões de livros e as críticas de filmes por textos sobre comida e lifestyle. Camus deu lugar ao tomate recheado com tomilho e queijo feta.

Em segundo lugar, encontramos a prática de desporto. Em terceiro lugar, temos a divinização da medicina. Há a secreta esperança de que a ciência médica será um dia capaz de vencer por completo a doença; é como se os seres humanos pudessem congelar o avanço do tempo através da técnica. Em quarto lugar, temos o medo em relação à presença da morte no espaço público: os mortos não são visitados no cemitério (o Dia de Todos os Santos é para ir ao Colombo); as câmaras mudam os nomes aos cemitérios, que se passam a chamar “centros funerários”; as pessoas têm medo da corporização da sua morte (cadáver) e exigem a burocrática cremação, que evita assim futuras visitas ao cemitério de quem cá fica; o coração da fé cristã, a Páscoa, está reduzida aos coelhinhos e à incursão pré-estival ao Algarve. Tempo ideal para se criar um discurso adulto sobre a morte, a Páscoa desapareceu da cultura popular.

Ora, esta cultura que evita a morte natural é a mesmíssima cultura que exige a morte a pedido (suicídio assistido, eutanásia). Contradição? Não. Trata-se, mais uma vez, de colocar a vontade humana à frente de tudo, à frente do próprio tempo, à frente da própria finitude.

Num primeiro momento, esta hubris racionalista assume que é possível evitar a finitude humana; vive-se, pensa-se, fala-se como se a finitude fosse evitável através da ciência médica e do lifestyle saudável. Num segundo momento, quando percebe que vivia num fingimento, a hubris racionalista assume o controlo absoluto da finitude humana que antes ignorava; esse controlo absoluto é feito através da eutanásia e do suicídio assistido.

Ou seja, na sua infância, a hubris racionalista carrega no botão do slow motion ou pause, procurando congelar o fluir do tempo, procurando uma falsa sensação de controlo do homem sobre a morte; mas, já na velhice, quando percebe que estes dois botões não lhe obedecem, carrega no botão fast forward, procurando de novo a falsa sensação de controlo. Só que agora o botão funciona mesmo, e aí é tarde demais.