A maratona da fé
18-05-2018 - 06:50

Ser católico pode até ser esgotante. Calma, calma, não me marquem já consulta no psiquiatra. É esgotante mas renovador.

Muita gente assume que um convertido tardio como eu anda à procura de segurança. Nesta visão, assume-se que a fé torna as coisas mais fáceis, que a Bíblia é uma bengala que o convertido desgastado pelas dúvidas procura para se amparar. Sucede que a fé não é bengala, é espada ou fogo. A fé torna as coisas mais difíceis. Na relação com o mundo, o que era óbvio é hoje complexo. Na relação com os outros, o que era simples é hoje trágico. A lente da fé mostra que não existem escolhas limpas ou óbvias. A luz católica, ao mostrar o mundo fora do umbigo do “eu”, é um desafio moral permanente. Ser católico pode até ser esgotante.

Calma, calma, não me marquem já consulta no psiquiatra. É esgotante mas renovador. É o cansaço que nasce do bom combate; é a fadiga alegre que inunda o maratonista quando corta a meta depois do inferno dos quarenta e dois quilómetros.

Se querem uma ilustração do que estou a dizer, procurem os filmes de James Gray, um realizador extraordinário que não tem nem metade da fama, prémios e prestígio que merece, porque é um autor clássico e muito provavelmente católico. Já aqui falei de um dos seus grandes filmes, “Nós controlamos a Noite”, uma variação de Abel e Caim.

Hoje quero recomendar “A Imigrante”, uma tragédia católica situada na Nova Iorque dos anos 20. Ewa Cybulska (Marion Cotillard) é uma imigrante polaca e católica que chega a Nova Iorque com a irmã. Depois de uma série de tropelias, Ewa é confrontado com um dilema: salvar a irmã implica a prostituição. É uma cenário trágico. Se Ewa não se prostituir ao serviço de Bruno Weiss (Joaquin Phoenix), a sua irmã é deportada. Neste primeiro caminho, Ewa fica para sempre com essa culpa: a irmã volta para a pobreza e guerra da Polónia porque ela não faz o que é preciso. Se se prostituir e salvar a irmã, Ewa fica para sempre com o nojo de ter passado pelo lupanar de Weiss. A magnífica cena do confessionário, que encima este texto, é o momento máximo deste dilema que a consome.

Este dilema surge a meio do filme. Mas há outro que está sempre escondido desde que ela coloca os pés na América, embora só fiquemos a par dele quando Ewa fala com a tia há muito emigrada nos EUA. Ei-lo: no barco, no caos fétido daqueles porões cheios de gente miserável que aceita tudo para chegar à Estátua da Liberdade, ela é forçada a fazer alguns favores sexuais; não ceder é o mesmo que ser morta. É neste momento que Ewa nos deixa o mote do filme: “mas sobreviver é pecado, tia?”. Manter-se pura naquele contexto significava não sobreviver. Sobreviver é pecado? A essência da tragédia é isto: há sempre pecado, mal ou opróbrio nas escolhas que temos à nossa disposição.

O cenário é negro, mas, como sempre, Gray oferece um ponto de fuga, um ponto exterior de luz. De resto, a espessura narrativa dos filmes de Gray é quase sempre esta: sim, o inferno da tragédia espera-nos lá fora, mas no final a salvação é possível. O amor de Weiss por Ewa acaba por redimi-lo, até porque é ele quem paga o preço final. O dilema derradeiro, que traz finalmente luz ao filme, é suportado por ele. A salvação é possível depois dos quarenta e dois quilómetros de dor – e não falo da dor de burro.