​1968, cinquenta anos depois
16-05-2018 - 06:30

Foi o ano de todos os sentimentos e emoções, multiplicando os ventos de contestação, de mudança, de reajustamento ou de reação.

Hannah Arendt escreveu um dia que a juventude do século XXI, que ela já não conheceu, “aprenderia o que foi o ano de 1968” assim como “nós aprendemos o que foi o ano de 1848”. A comparação fazia sentido e em mais do que um aspeto. 1968 foi um tempo único, e não apenas pela revolução estudantil e operária parisiense de maio, cujo cinquentenário agora se evoca. Foi o ano de todos os sentimentos e emoções, multiplicando os ventos de contestação, de mudança, de reajustamento ou de reação que varreram a mais ruidosa década desde a II Guerra Mundial até aos nossos dias.

Num mundo em ebulição, foi um tempo terrível, com a ofensiva do Tet na Guerra do Vietname, com os assassinatos de Luther King e Robert Kennedy, ou com o esmagamento sangrento da Primavera de Praga; mas foi também o instante de todas as esperanças, pela reinvenção e afirmação das juventudes e de largos estratos das sociedades ocidentais contra o que se achava serem poderes burgueses envelhecidos, economias iníquas e quotidianos culturais e mentais cinzentos. Na distância geracional então vincada entre os que estavam instalados no “sistema” e os que queriam, em registo de utopia esperançosa e revolucionária, construir outro “sistema”, o maio de 68 pareceu, de facto, a muitos, o epicentro de uma nova “primavera dos povos”, tão democrática, libertária e ecuménica como aquela de 1848.

Mesmo imóvel na observação dos mais distraídos ou nos desejos dos mais comprometidos com o Estado Novo, nem o Portugal desse tempo escapou à agitação e às ruturas. Apesar da censura e da PIDE, o caldo ideológico dos contestatários parisienses (socialistas reformistas, comunistas ortodoxos, maoístas, anarquistas ou simples românticos libertários), também chegou às universidades, às escolas, às fábricas, às livrarias, aos cafés e às ruas. Em França, o maio de 68 não mudou o mundo, mas conseguiu a queda do velho De Gaulle. Nos EUA, os protestos anti Vietname e a efervescência cívica à Woodstock não derrubaram Nixon, mas minaram-lhe a presidência.

Em Portugal, 1968 foi o ponto nodal de uma década já ensombrada pela guerra em África, ao longo da qual Salazar, o “messias” de outrora, se transformara numa abencerragem política deslocada no tempo, mesmo antes de o seu acidente vascular-cerebral ter obrigado o presidente Américo Tomás a substituí-lo por Marcelo Caetano. E o marcelismo, sabemo-lo, se nasceu sorridente e primaveril para muitos, acabou, em 1974, num nó górdio sem saída.

Revisitar 1968, hoje, é retroceder a um tempo em que tudo parecia ser teoricamente possível, ao mesmo tempo que a prática das coisas e as contingências inultrapassáveis demonstravam os perigos das utopias, os excessos da ação e os limites das conquistas. Jean-Paul Sartre elogiou Daniel Cohn-Bendit por ter levado “a imaginação para o poder” e por ter assim aberto “a extensão do campo das possibilidades”. A coalizão jovem, revolucionária e internacional do tempo mostrou que nenhuma época nem nenhum “status quo” são obras eternas e imutáveis e que a história não tem fins, nem últimos homens. Parte dos contestatários, porém, não se dava conta de que a alternativa que propunha era mais totalitária do que a suposta opressão burguesa e conservadora contra o qual erguia barricadas e queimava carros. Felizmente, esses não venceram. Mas o maio de 1968 – e todo aquele ano, por toda a parte – merece ser estudado, porque é uma extraordinária lição de história sobre como gerir, destrinçar e decantar expetativas e processos de mudança e de (re)ajustamento, num determinado momento da evolução social coletiva.