Marvila. O lado invisível de Lisboa
04-03-2016 - 15:59
 • Joana Bourgard , João Carlos Malta


Na década de 1960, quem chegasse a Lisboa e fizesse o percurso de comboio pela zona Oriental era logo envolvido por uma atmosfera particular. As chaminés marcavam o desenho da paisagem. Estava ali o motor industrial da cidade. Marvila, tal como Portugal, viveu logo de seguida um período de desindustrialização, o que levou a profundas mudanças económicas, primeiro, e sociais, depois. Onde havia vida passou a haver abandono.

O desenvolvimento do Parque das Nações e da turística Alfama (que ladeiam Marvila) adensou o sentimento de perda dos que lá ficaram. E ainda são muitos, mais de 38 mil os que fazem daquele espaço a terceira maior freguesia da capital. Há, no entanto, um dado preocupante para a vitalidade desta zona: entre os Censos de 2001 e os de 2011, o crescimento da população com mais de 65 anos foi de mais de 34%. Em sentido contrário, os jovens entre os 15-24 anos são menos 32%.

Marvila enquanto centro industrial – do sabão, do tabaco, do vinho, dos fósforos ou do armamento militar – começou a definhar nas décadas de 1980 e 1990. Alguns anos volvidos, os criativos instalam-se agora na zona oriental de Lisboa para lhe dar uma nova cultura económica. Começa a entreabrir-se no horizonte a esperança de um futuro inovador, que levou a que a fama já tivesse saltado barreiras. O diário espanhol “El País” chamou-lhe mesmo o “bairro secreto de Lisboa”.

Ainda assim, e se o espaço industrial está lá, gigante no tamanho e com bastantes locais recuperados para novas actividades, o emprego não tem as dimensões de antigamente. Em média, a maioria destes negócios que surgiram tem menos de 10 pessoas a trabalhar, ou seja, são microempresas. Aumentando a escala, o desemprego, um dos piores flagelos do país, mas também de Marvila, é ali de 17%. Mais quatro pontos percentuais do que no resto da cidade de Lisboa.

João Pedro Silva Nunes é professor de Sociologia e investigador na Universidade Nova de Lisboa. Durante algum tempo dedicou atenção a Marvila, a quem lá vive e a como a cidade foi olhando para ela. Estudou-a a fundo.

“Marvila está entre dois pólos muito fortes de crescimento e de desenvolvimento urbano. Para norte o Parque das Nações, o que sobrou da Expo 98 e que depois foi desenvolvido com centros comerciais. Hoje, tem o Campus de Justiça, clínicas, escolas privadas e habitação de gama alta. No outro lado, abre-se a zona histórica, Alfama, cada vez mais turística”, explica.

“In between”

“Marvila, que era uma zona muito forte do ponto de vista industrial e que está ‘in between’, encontra-se expectante relativamente a dinâmicas urbanas de transformação e de ocupação”, sustenta.

Silva Nunes sublinha que aquela freguesia se tornou numa “cidade esquecida”, numa parte da “Lisboa invisível”. “Há razões de ordem estrutural nas grandes cidades; os residentes e os investidores têm das cidades visões muito parcelares. Há zonas pouco procuradas, pouco frequentadas, pouco conhecidas. São as que ficam ocultas e invisíveis para o citadino”, explica.

Marvila foi um entreposto muito importante na recepção das populações que vinham do campo. A estação ferroviária de Braço de Prata era a porta de entrada numa nova realidade. A indústria era o destino e as barracas asseguravam uma estada por tempo indeterminado.

A explicação é monetária. Uma casa custava à época [1960], em média, entre 500 e 700 escudos, o que, somando a inflação, daria, aos preços actuais, entre 215 e 301 euros. O salário médio nas fábricas era de 500 escudos, ou seja, exactamente o valor do arrendamento de um apartamento.

Maria Rosa Gonçalves e Jorge Jesus Paiva são exemplos dessa realidade. Oriundos do distrito de Viseu, chegaram a Marvila e logo foram parar às barracas do Bairro Chinês. Uma tragédia, mesmo para quem vinha da província.

“Até me custa dizer, quando aqui cheguei, saí em Braço de Prata. Ao ver a barraquita que ele tinha, encostei-me às tábuas e pensei: ‘Para onde eu vim. Deixei uma casa tão boa, em pedra, para vir para aqui.’ Então, chorei, chorei, chorei...”, relembra.

Contudo, quem vinha de fora, do Norte sobretudo, podia ainda ali ver o verde dos campos. Marvila está polvilhada de pequenas hortas que são um miniceleiro que poupa muitas idas ao supermercado. Estes cultivos ajudaram, e ajudam, à subsistência de muitas famílias que vivem com menos de 500 euros.

Barracas e bairros duas dimensões da mesma realidade

A meio da década de 1960, na Grande Lisboa, chegaram a ser 115 mil famílias e meio milhão de pessoas a estarem alojadas em barracas. Sete em cada dez não tinham completado sequer os quatro anos de escolaridade obrigatória. No Bairro Chinês, os números variam, mas calcula-se que fossem cerca de duas mil barracas para 10 mil pessoas.

As fábricas onde Jorge e Maria trabalharam já não operam, assim como o bairro de barracas em que viviam no coração de Marvila também já não existe. O chamado Bairro Chinês foi arrasado e ali nasceu o bairro do PRODAC.

Ou melhor, nasceu meio bairro, porque a falência da associação promotora fez com que a construção das casas ficasse a meio. Apenas as paredes e o telhado. Foram os novos residentes que tiveram de as terminar para que aquele aglomerado tivesse o aspecto actual. Ainda assim, sedimentou-se uma ideia. Os bairros sociais seriam o novo “ex-libris” da habitação criada pelo Estado. Os mais carenciados teriam novo lar, que se queria melhor.

A revolução urbanística foi ali tão intensa que Marvila conquistou o lugar de campeã dos bairros sociais de Lisboa: tem dez no total e 70% da população habita nestes aglomerados.

Estavam criadas as condições para que novos guetos urbanos emergissem. A Zona J, agora Bairro do Condado, é o maior exemplo dessa política em que o realojamento de pessoas desenraizadas, com problemas sociais de toda a ordem, promoveu o aparecimento de uma “ilha” plantada no meio da cidade. Em Marvila, a percentagem de analfabetos, quase 7% (2.390 pessoas), é duas vezes mais do que a que existe em Lisboa (3%). Esta realidade numérica é conhecida e o estigma tem dificuldade em cair.

Vera tem 35 anos. É animadora social. Trabalha com crianças e jovens e nasceu na Zona J. Fora dali, sempre que diz de onde é, a recção está quase padronizada: "‘És da Zona J, não pode ser?’ Sou, e qual é o problema? ‘Ena, aquele bairro?’ Em todos os bairros há chatice, em todos os bairros há rusgas. Em todos os bairros há droga”, responde. E depois deixa um lamento e um apelo: “As pessoas não conhecem, falam pelo que ouvem. Para se falar tem de se vir cá.”

Adriano também tem 35 anos e, com Vera, lidera a associação Torre Laranja. Conhece todos os recantos daquele bairro com mais de cinco mil pessoas. E a força do preconceito. “Numa entrevista de trabalho, não acredito que as pessoas digam que moram aqui. Dizem que são de Marvila ou que vivem ao pé da Expo”, refere.

Uma contradição a cada esquina

Marvila é um território de contradições – entre a velha barbearia, o alfaiate de dedal antigo, a mercearia que ainda serve a população local e a invasão daquilo a que João Pedro Silva Nunes chama os “novos participantes na economia da cidade e na economia da cultura”.

O sociólogo frisa que as diferenças entre as várias zonas de Marvila são notórias logo no percurso a pé entre a parte das colinas e a zona ribeirinha. “É preciso um conhecimento do local para resolver determinados impasses urbanísticos em Marvila, nomeadamente vias rápidas, bairros encravados e hortas que vão surgindo”, ilustra o investigador.

“Vamos encontrando bocados de cidade que vão sendo cosidos entre a parte alta e baixa. Em Chelas estamos perante um espaço inacabado onde encontramos muitos vazios, onde há falta de passeios e onde o espaço público é inacabado”, defende.

A tensão entre os resistentes que ficaram e os que vão agora chegando é inevitável. Duas realidades, duas perspectivas, dois passados e dois futuros. “Haverá tensões entre os que são do lugar e que vão reivindicar para si a questão da antiguidade – muitas vezes pessoas com poucos recursos económicos – e os que chegam com novas actividade”, adianta o professor.

“É uma conflitualidade económica e urbana que agora ainda é latente, mas que depois será mais efectiva”, resume o sociólogo João Pedro Silva Nunes.