Obstáculos ao livre comércio
23-06-2018 - 09:01

Os EUA estão a travar o livre comércio fora e dentro do seu país.

Na presente escalada da guerra comercial desencadeada por Trump quase só se fala na subida de direitos alfandegários, entre nós, por vezes, impropriamente designados por “tarifas”, tradução do inglês “tariffs”; mas em português tarifa designa o preço de um serviço – tarifas de eletricidade, preço de um bilhete de comboio, etc.

Ora, durante as últimas décadas uma sucessão de rondas negociais a nível mundial, ou quase, reduziram significativamente os direitos alfandegários ou aduaneiros. Em média, em 2015 a pauta aduaneira dos EUA cobrava 2,4% do valor dos bens importados; a do Canadá 3,1%, a do Japão 2,1%; e a da UE 3%.

Claro que a guerra comercial vai inverter esta tendência, que favorecia os consumidores e que impulsionou a repartição da produção de bens e serviços por diversos países e várias empresas.

Ficou célebre um caso passado, há anos, com uma empresa americana, que se queixava de concorrência desleal por parte de uma empresa japonesa. Ora concluiu-se que o artigo produzido pela empresa americana continha mais elementos importados do Japão do que o artigo produzido no Japão continha elementos… japoneses.

A vida fica mais complicada para as empresas multinacionais, que repartem o seu sistema produtivo por diversos países. A percentagem na importação de bens para incorporar no total das exportações mundiais subiu de 26% em 1995 para 31% em 2010, mas desceu para 30% no ano passado. Queda maior (23%) teve em 2017 o investimento direto estrangeiro no mundo. Tudo isto configura uma travagem na globalização, que afetará o crescimento da economia mundial.

Recuo da globalização

Mas os obstáculos ao comércio internacional não se limitam à subida de direitos alfandegários, ao contrário do que estas semanas de guerra comercial poderiam sugerir.

Nos anos 30 do séc. XX, em plena Grande Depressão, eram frequentes as chamadas desvalorizações competitivas: vários países desvalorizavam as suas moedas para ganharem competitividade nas suas exportações. Um ganho que durava pouco tempo e trazia inflação (subida do preço das importações) a quem utilizava este instrumento cambial.

Por outro lado, o comércio internacional pode ver as suas regras falseadas se houver subsídios estatais às exportações. Ou se houver apropriação ilegal de tecnologia, como os americanos se queixam dos chineses. A Organização Mundial do Comércio (OMC) tem a incumbência de combater ilegalidades como estas. Mas Trump despreza a OMC e tudo fará para a tornar inoperacional.

Vale a pena lembrar que a UE logrou construir um “mercado único” combatendo as barreiras não pautais ao comércio. Por exemplo, é fácil impedir o acesso a um mercado a determinado produto invocando regras de segurança e de sanidade. Recordo alguns casos. A certa altura, a Alemanha impôs uma determinada composição química da cerveja; o resultado prático era que tal regra, supostamente motivada por preocupações de saúde, excluía do seu mercado nacional quase todas as cervejas importadas.

Lembro-me, ainda, de uma empresa portuguesa que produzia sofás ser impedida de os vender na Grã-Bretanha, por causa de uma norma de segurança contra incêndios – alegadamente, os sofás tinham matéria inflamável…

Como foi possível, no quadro da UE, eliminar uma enorme quantidade de obstáculos não pautais? Cedo se viu que realizar negociações entre todos os Estados membros sobre cada um dos milhares de obstáculos não pautais ao livre comércio seria uma tarefa infindável. Decidiu-se, então, que cada país se responsabilizaria pela apreciação dos casos duvidosos, sendo a sua decisão aceite pelos outros Estados membros. Uma prova de confiança recíproca no interior da UE, que talvez hoje já não fosse possível.

Concentração empresarial

Os EUA desencadearam a guerra comercial, que afetará e muito o comércio internacional e o crescimento económico mundial. Curiosamente, no interior dos EUA também se regista, de alguns anos a esta parte, um certo desinteresse pelas regras da concorrência – que é, repita-se, a primeira linha de defesa do consumidor. Por exemplo, há dias foi autorizada nos EUA a fusão entre dois gigantes dos “media”: a AT&T e a Time Warner.

Numa escala obviamente muito maior, é um negócio semelhante ao que, em Portugal, foi inviabilizado pela Autoridade da Concorrência: a compra da Media Capital pela Altice. Motivo: a distribuidora televisiva, a Altice (Meo), poderia favorecer a sua própria produtora de conteúdos, a Media Capital (TVI), prejudicando os outros concorrentes no mercado. No caso americano a produtora de conteúdos é a Time Warner e a distribuidora a AT&T.

Tem-se acentuado na economia americana a tendência para uma crescente concentração empresarial, com menos empresas a competir em vários sectores. Isto, num país que em 1911 (numa altura de capitalismo selvagem) o Supremo Tribunal partiu a Standard Oil, um quase monopólio petrolífero de Rockefeller, em 34 empresas menores, restaurando a concorrência.

Ora, entre 1970 e 1999, os reguladores americanos instauraram, em média, 16 processos por ano por violação das regras da concorrência; mas entre 2000 e 2014 essa média anual não chegou a três.

Naturalmente que, com Trump, baixa ainda mais nos EUA o empenho em manter um bom nível de concorrência empresarial. Tal como, externamente, os EUA travam a concorrência no comércio internacional.

PS. Umas curtas férias suspendem os meus textos neste “site. Se Deus quiser, regressam na terça-feira, 3 de julho.