Emissão Renascença | Ouvir Online

Graça Franco

Não falta dinheiro, sobra amadorismo

27 fev, 2015

O que aconteceu aos quase dois mil milhões de contribuições e impostos cobrados a mais só no último ano? Alguém tem a amabilidade de nos explicar?

Não há dinheiro. A explicação repetida à exaustão (desde os tempos de Vítor Gaspar na sua pausada, irritante e irónica voz professoral) vai fazendo o seu caminho e serve para consolidar a nossa preguiça mental. Se alguém diz que não há dinheiro, a vaca sagrada financista impõe-se como verdade universal. Dispensa-nos de fazer sequer uma segunda pergunta: O que aconteceu aos quase dois mil milhões de contribuições e impostos cobrados a mais só no último ano? Alguém tem a amabilidade de nos explicar?

O estado de degradação da escola de música do conservatório de Lisboa é exemplar. Um edifício não chega àquele estado de degradação em quatro anos de austeridade. O desleixo que nos envergonha enquanto país vem obrigatoriamente muito de trás. Há décadas de abandono por detrás do estado caótico a que a escola chegou.

Enquanto a Parque Escolar forrava a mármore e decorava com lustres de Siza Vieira outras escolas públicas de Lisboa, já se forravam os tectos a plástico e se convivia com baldes e alguidares como se fossem objectos de decoração na mítica escola de música da capital. Muito antes de Crato chegar à 5 de Outubro, outros certamente terão dito que já “não havia dinheiro” para consertar janelas, reparar vigas e tapar as fendas.

Mas o facto de não se terem feito obras nos tempos de vacas gordas não desculpa nem apaga a responsabilidade pela incúria dos últimos quatro anos. Bem patente no alargamento dos buracos do chão, a ponto de se ver o andar de baixo, nos pátios interditados por motivos de segurança e na degradação generalizada que levou a inspecção camarária a mandar encerrar nos últimos dias, com carácter de emergência, dez salas de aula literalmente em perigo de derrocada. Vale a pena espreitar o facebook de alunos e professores para confirmar o caos.

Com os alunos de coletes reflectores e capacetes na cabeça a tocar em protesto em plena rua, o Ministério da Educação fez o costume: disse que a direcção já estava autorizada “ a pedir os orçamentos”.

Depois das reuniões de emergência com a tutela os responsáveis da escola também já apresentaram um plano B: com jeito os 200 alunos irão encaixar-se, transitoriamente, entre a sala de professores e a biblioteca, o auditório e a sala de espectáculos e continuar a estudar, e a fazer audições e exames sem que lhes caia algum tijolo na cabeça.

Estudam ali talvez alguns daqueles que (sem dinheiro para estudar no estrangeiro…) irão nos próximos anos, contra tudo e contra todos, dar nome a Portugal (novas Joanas Carneiros ou Maria Joões Pires… estão certamente entre aqueles que ontem abraçaram o velho conservatório do Bairro Alto). Chegados ao sucesso haveremos de os encher de comendas e tratar nas palminhas. Mas não é possível apagar o desrespeito de que foi alvo a sua formação. A história não se reescreve.

Na semana em que se debate o combate ao insucesso escolar a desatenção dispensada a um dos instrumentos mais preciosos para favorecer o sucesso e prevenir o abandono fica escandalosamente à vista. O ensino da música e das artes é, em si mesmo, uma escola de esforço, disciplina, capacidade de atenção e concentração, facilitadora de muitas outras aprendizagens desde as línguas estrangeiras até às matemáticas. A Finlândia é apenas um bom exemplo dessa aposta.

Mas em Portugal o debate sobre sucesso e insucesso continua reduzido à ambição máxima de por os portugueses a saber “escrever e contar” e à pobre dicotomia: devemos fazer mais ou menos exames e chumbar mais ou menos alunos?

Com os mesmos rigoristas que aos sete anos já querem reprovar as criancinhas forçados a aceitar discutir depois, perante a realidade dos politécnicos às moscas, se a forma de os encher deve passar por permitir a entrada aos jovens com negativa nas disciplinas nucleares dos cursos que pretendem tirar, desde que tenham passado por um triz nos exames do 12º ano. O absurdo não pode ser maior.

Nada disto se justifica por falta de dinheiro. A explicação está antes no excesso de amadorismo, na ausência de visão de conjunto, e na falta de estratégia transversal a médio e longo prazo. Tal como não é porque não podemos gastar num pavilhão seis a oito milhões de euros que Portugal não estará na exposição universal de Milão em 2015.

Seis milhões é muito dinheiro. Pois é. É muita escola que assim não fica por arranjar. Não. São falsas e tolas as comparações demagógicas . Poucas acções de promoção do nosso agro-alimentar nos custariam tão barato. A nossa prioridade não era apostar nas exportações e na diplomacia económica? Então como desperdiçar a oportunidade de estar presente na montra mundial com um sector que cresceu quase 8%, só no último ano, e cujo valor de produtos exportados ronda os seis mil milhões de euros.

Alguém acredita que junto dos mais directamente interessados não era possível encontrar o equivalente a pouco mais de uma milésima do volume de negócios para os promover externamente? É caso para perguntar: alguém pensou nisso, alguém procurou mecenas?

Desculpa de mau pagador. Como diz o povo. A verdade é que o convite aterrou primeiro no Ministério dos Negócios Estrangeiros e quando finalmente chegou ao Ministério da Agricultura (porque o tema desde ano é alimentar o planeta…) já não se ia a tempo para encontrar sequer um espaço condigno no próprio recinto da exposição. Países como a Bielorrússia ou Moçambique tinham chegado primeiro. Sem espaço para construir o pavilhão o gasto no dito tornou–o, de facto, razoavelmente inútil.

Mas a isto não se chama “ boa gestão” mas desperdício de oportunidades. Não é falta de dinheiro, é excesso de amadorismo, trapalhice e, sobretudo, falta de visão de longo prazo. Saber o que queremos e para onde vamos. Coisas que só dependem de nós e, infelizmente, não se compram no mercado nem nenhum programa da troika nos consegue garantir. Azar nosso.