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Reportagem

"A vida entra-nos por todos os poros". Na Fonte da Prata, há consagradas ao serviço dos outros

26 fev, 2015 • Ana Rodrigues

Escravas do Sagrado Coração de Jesus ajudam moradores de bairro da Moita. Vivem lá desde 1992. "Não tem sentido ajudar de fora."

"A vida entra-nos por todos os poros". Na Fonte da Prata, há consagradas ao serviço dos outros
A vida dos outros é a delas também. As Escravas do Sagrado Coração de Jesus fizeram do bairro social da Quinta da Fonte da Prata, na Moita, a sua casa. É ali que as irmãs comem, dormem, riem e partilham experiências, desde 1992, com a comunidade.

Ajudam quem chega de África (a origem da maioria dos cinco mil moradores do bairro), mas também quem vem do Norte ou do interior de Portugal. Ajudam todos os que chegam em busca de trabalho.

Ana Melo e Castro é uma das irmãs. Viver na Quinta Fonte da Prata ajuda-a a conhecer quem está a ajudar. "O projecto faz muito mais sentido por estar mais próximo das pessoas. Não tem sentido ajudar de fora. Para nós tem muito mais sentido ajudar estas comunidades incertas".

Rodeada das crianças que ali vão todos os dias, estudar e brincar, Ana sente-se feliz. "Quando vim para este bairro, comecei a sentir que o Senhor me chamava para me entregar mais de fundo ao seu projecto e percebi que o Senhor me chamava à vida consagrada e a entregar a vida aos seus projectos, nas Escravas do Sagrado Coração de Jesus."

Optar pela vida religiosa não foi fácil. De olhos brilhantes, sorriso embaraçado e com uma cruz pendurada sobre uma camisola de lã e cachecol, Ana relembra que a família não estava à espera desta decisão: "Para a minha família foi difícil. São católicos praticantes, mas quando disse que ia entrar para a vida religiosa reagiram mal. Ficaram tristes e não esperavam."

Não ser mãe não foi uma renúncia para Ana. "Foi escolher entrar para a vida religiosa e entregar a minha vida e o meu coração a muito mais crianças e a todas as pessoas que apareçam no meu caminho. Muitas delas não têm lugar no coração de ninguém", diz.

Foi a certeza que sentiu, e que não sabe explicar, que fez com que "desse o passo, que fosse em frente e arriscasse".

Almerindo, de aluno a professor
Entre os projectos das Escravas do Sagrado Coração de Jesus está o "Tasse". Quer travar o abandono escolar. Todos os dias um grupo de crianças recebe apoio escolar.

É uma espécie de grande família que, além de competências, apoio e formação, dá também carinho e amizade. Componentes que Almerindo presta diariamente. De aluno passou a professor. Foi a primeira criança do "Tasse".

Concluiu o curso profissional de animação sociocultural, equivalente ao ensino secundário. Entretanto, surgiu a oportunidade de trabalhar com as crianças que agora estão num papel que outrora foi o dele. Não hesitou e ficou a trabalhar no projecto.

O "Tasse" presta apoio a mais de 80 crianças do bairro da Fonte da Prata. Em paralelo, a Congregação das Escravas do Sagrado Coração de Jesus tem também o Centro de Apoio à Integração dos Imigrantes.

É aqui que encontramos Carlota Morais, outra irmã ao serviço desta causa. Ensina a ler e escrever em português.

Foi aos 19 anos que decidiu dedicar-se inteiramente a ajudar os outros. "Identifico-me muito com esta população. Até porque venho de um meio mais rural", diz.

Esta entrega aos outros foi algo que a família aceitou desde cedo. A única preocupação dos pais e dos irmãos foi tentar perceber se esta escolha era a mais acertada para a felicidade de Carlota.

A irmã vai ensinando a arte de juntar as letras. Com alunas já mulheres e mães africanas, acompanha o progresso e a felicidade de quem ali aprende. Uma delas repete, atenta e empenhada, as letras e as palavras que aprende na aula.

"Sem o que me ensinaram aqui, nunca teria uma caneta na mão. Agora, até já sei assinar o meu nome e já escrevi uma carta".

"Toca-se mais, sente-se mais"
É entre cadernos e lápis que se partilham histórias, se trocam sorrisos e se ouvem lamentos. "Aqui é mais próximo. Toca-se mais, sente-se mais, cheira-se mais, ouve-se mais. Portanto, a vida entra-nos por todos os poros. Nesse sentido, comove-nos mais", diz Carlota.

Ela e a irmã Ana partilham a mesma casa no bairro, igual às dos outros moradores. Já ninguém estranha a presença destas mulheres, mulheres que um dia tiveram de fazer uma escolha.

Esta reportagem, emitida no último programa Princípio e Fim, faz parte de um ciclo de trabalhos da Renascença que partem do desafio do Papa Francisco na sua mensagem para esta Quaresma. A Renascença partiu à procura de cristãos que se dão aos outros em áreas habitualmente esquecidas ou periféricas, contrariando a "indiferença" denunciada por Francisco