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Graça Franco

Sei que estão em festa (lá), fico contente

19 dez, 2014 • Graça Franco

Tudo pode falhar? Pode. Há riscos? Há. Mas para os cubanos a festa de ontem prova que se abriu um nicho de esperança.

Enquanto em Cuba o povo festejava na rua a chegada dos três espiões libertados pelos norte-americanos e sonhava com uma nova era nas relações económicas com os Estados Unidos (quem sabe talvez a Coca-Cola possa chegar finalmente às "tendas", para já não falar na prometida generalização da Internet com toda a mudança que isso significa de revolução nas comunicações), Obama começava a sofrer na pele a ousadia de ter tentado contrariar a tese da "inevitabilidade" da manutenção do embargo a Cuba, abrindo a porta aos riscos de um restabelecimento das relações diplomáticas entre os dois países. Pelo meio generalizavam-se os elogios ao papel essencial de Francisco como gerador da mudança.

Mais uma vez, agora no segredo do seu trabalho diplomático, o Papa surpreendeu o mundo que acabou por ver os dois lados da barricada, Obama e Raul Castro a elogiar-lhe os préstimos na mudança gerida com magistral discrição. Não foi a primeira vez que a Igreja tentara forçar a abertura do regime de Havana, por um lado, e a flexibilidade da diplomacia norte-americana, por outro. Um esforço realizado em nome do povo de Cuba (onde o cristianismo resiste), e o grande mártir de mais de 50 anos de embargo económico.

Em 98, o pragmatismo de João Paulo II, que, enquanto polaco conhecia bem o peso das ditaduras comunistas, levou-o à ilha. Foi na sequência da visita em que "Deus entrou em Havana" (como Manuel Vasquez Montalban deixou escrito para a posteridade), que não pararam mais os contactos para que a mudança fosse possível. Bento XVI, o Papa que viu cair o muro, não se furtou ao regresso a Cuba em 2012, contribuindo mais uma vez para uma nova brecha na muralha de gelo que isolava a ilha condenando o seu povo a uma pobreza endémica. Francisco, o Papa que veio da América, em certa medida já recolhe esses primeiros frutos mas, conhecendo como nenhum dos predecessores a situação da ilha não se furtará aos esforços finais para a alterar.

Se há coisa que marca toda a pastoral deste Papa é, sem dúvida, o facto de nos ensinar a não desistir nunca de mudar o mundo para melhor. Ele ensina-nos a recusar ver o mal como uma inevitabilidade desistindo de o eliminar. E isto não se reduz à questão económica onde esse discurso da inevitabilidade do mal ameaça paralisar-nos, pouco a pouco, levando à desistência de buscas de soluções alternativas. Também se aplica à política (o caso da Terra Santa, abrindo caminho ao reconhecimento internacional do Estado da Palestina e a recente ida à Turquia são apenas exemplos). O segundo ensinamento de Francisco é o de que não podemos ficar tolhidos pelo medo de errar nem pelos riscos associados ao erro na nossa reputação. Francisco repete-nos que os acidentes são sempre possíveis, mas mais vale uma Igreja ou uma politica acidentada do que imobilizada.

Passados dois dias, basta reler os artigos publicados em todo o mundo para ver como Obama assumiu com coragem esse desafio de ousar tomar a medida "errada". Os republicanos ameaçam fazê-lo esperar anos pela concessão do visto prévio para a simples nomeação do anunciado embaixador em Havana, para já não falar do facto de dominando o Senado (essencial para a nomeação do embaixador) e também a Câmara dos Representantes, terem a faca e o queijo na mão para bloquear no Congresso qualquer vaga hipótese de renegociação das leis do embargo.

Tudo pode ficar assim em águas de bacalhau? Pode. E isso traduzir-se-á num balão de oxigénio para o moribundo regime de Castro e numa humilhante derrota para os Estados Unidos, depois de 50 anos de insistência numa política diplomática apontada como única maneira susceptível de fazer dobrar a espinha à velha ditadura? Sim.

Pior ainda, do lado democrata estão também muitos a juntar-se ao coro de criticas afirmando que Obama é, simplesmente, "o pior negociador externo" que alguma vez passou pela Sala Oval capaz de morder candidamente o anzol lançado pelas autoridades cubanas com a prisão do cidadão norte-americano cuja libertação (a troco dos três espiões cubanos que ontem voltaram a casa…) foi a causa próxima da reaproximação diplomática, longamente negociada em sete encontros secretos realizados no Canadá com mediação do Vaticano.

Às críticas e ameaças dos republicanos (que a partir de Janeiro dominarão as duas câmaras) pelas vozes de Marco Rubio e Ted Cruz, ambos "presidenciáveis" e descendentes da comunidade cubana refugiada na Flórida, juntou-se ainda a voz indignada do governador do Estado e são apenas um pequeno sinal das dificuldades do futuro.

Há uma dúzia de anos eu própria, integrada num grupo de jornalistas internacionais a participar num programa do German Marshal Found, fui testemunha, em Miami, do aceso debate e das preocupações e divisões da comunidade de segunda geração (cujo voto é essencial nas presidenciais norte-americanas) sobre o rumo certo a dar às relações entre os USA e a ilha.

Não chegavam a acordo sobre nada quanto a medidas futuras, mas em dois pontos reinava total consenso: primeiro, o embargo era considerado um falhanço estrondoso da medida que acabara sobretudo a oferecer a Fidel o bode expiatório perfeito para toda a incompetência da ditadura instalada, perpetuando a dúvida sobre o verdadeiro agente do mal; segundo, a sua principal vítima nunca fora o regime de Fidel, mas o povo cubano condenado à pobreza e ao isolamento.

Mais do que o ganhar e perder na cena internacional impôs-se a necessidade de pôr termo a esse martírio do povo. Foi isso que o Santo João Paulo II, Bento XVI e Francisco quiseram alterar. Tudo pode falhar? Pode. Há riscos? Há. O regime agonizante pode receber um balão de oxigénio sem que os cubanos vejam fim à vista à privação da liberdade? Talvez. Mas para os cubanos a festa de ontem prova que se abriu um nicho de esperança. A tal que Francisco não se cansa de dizer que não podem deixar que nos roubem. É em nome da esperança que é tempo do mundo celebrar esta quarta-feira histórica ao som do repique de sinos de Havana, e do refrão do Chico (sei que estão em festa (lá)… fico contente).