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Graça Franco

Mortas vivas

27 nov, 2014 • Graça Franco

Hoje, felizmente, a violência doméstica já é crime público. Só triunfará em toda a sua maldade se os "bons" continuarem a cruzar os braços. Porque é esse silêncio cúmplice, esse desviar os olhos, que cria o sentimento de impunidade que faz a violência florescer.

Há mais de uma década na Bélgica assisti a uma campanha de sensibilização contra a violência doméstica. O alvo era sobretudo a comunidade emigrante, designadamente a portuguesa, considerada já então mais vulnerável porque tolerante em relação a este tipo de crime. Em Portugal deram-se entretanto passos de gigante na criminalização do fenómeno embora tenha tardado a sensibilização. Mas “nunca é tarde demais …”, como diz o mote da própria campanha lançada esta semana para combater a violência doméstica contra mulheres idosas.

Fiz a minha primeira denúncia à polícia da violência exercida sobre uma vizinha, logo a seguir à revolução, quando a polícia ainda só se considerava autorizada a intervir se a vítima clamasse por socorro recorrendo à exacta fórmula “Ó da guarda!”.

Da discussão mantida, ao telefone, com o agente de serviço recordo vagamente que ele argumentava que só poderia intervir se o pedido de socorro evocasse a intervenção policial, senão, tratava-se de coisa reservada à “vida do casal” porque “entre marido e mulher…” não era lícito ninguém intrometer-se. Na altura, a pobre vítima gritava, alguma coisa vaga ao estilo: acudam-me, senão ele “mata-me”. A mim este grito bastava. Ao agente não.

Ainda hoje me pergunto em que medida o criminoso não matou porque em desespero, no meu ardor juvenil, ameacei o guarda com a inutilidade da Revolução de Abril. “Não foi para isto que se fez uma revolução!”, lamentei, desesperada. O guarda, talvez temendo ser considerado contra-revolucionário, acabou por ceder. E apareceu a exibir o bigode da autoridade.

Hoje, felizmente, a violência doméstica já é crime público. Não depende de queixa da vítima, apenas de sinalização social. Resumindo, só continuará a fazer caminho, só triunfará em toda a sua maldade se os “bons” continuarem a cruzar os braços, como dizia Burke. Porque é esse silêncio cúmplice, esse desviar os olhos, que cria o sentimento de impunidade que faz a violência florescer.

No seu extraordinário discurso sobre a Europa, o Papa lançava, esta semana, mais um apelo contra a cultura do descartável de que são especialmente vítimas os mais frágeis e os idosos. As mulheres idosas vítimas de violência são algumas das suas vítimas preferenciais.

“Dizem-me que já não ando cá a fazer nada”. É uma das frases choque dos cartazes da campanha. Uma sociedade que endeusa a juventude e reduz o valor da vida à sua capacidade produtiva, como a Europeia, é campo fértil à propagação desta violência psicológica extrema. A sociedade africana e asiática ao valorizarem a experiência e o conhecimento adquirido e a sageza dos seus anciãos acautela-os bem mais deste tipo de estigma.

“Querem tomar conta do meu dinheiro”. É o segundo tema dos cartazes, desta vez, contra a nova violência financeira. O deus dinheiro de que Francisco fala estende também aqui as malhas do seu culto. Subitamente os idosos tornam-se presa fácil da ganância dos mais próximos que tentam expropriá-los do direito a usufruir livremente dos seus bens até final da vida, e em benefício próprio.

Por último, a acusação “o meu marido chama-me desastrada” citada, no terceiro cartaz, chamando à atenção para a mais frequente violência física e psicológica continuada. Uma realidade a que muitos de nós continuamos a fechar os olhos, numa cumplicidade que é em si igualmente criminosa porque cúmplice com a violência que vai lentamente torturando e matando vivas dezenas de mulheres, mesmo aquelas que, por nunca chegarem a ser assassinadas “por fora”, não chegam a contar para as estatísticas dos jornais.