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Graça Franco

Facebook, Apple e os filhos adiados

21 out, 2014 • Graça Franco

A maternidade e a carreira não são dois projectos entre os quais é preciso escolher. A mulher, qualquer mulher, seja trabalhadora têxtil, seja engenheira aéreo-espacial, tem direito a ambas.

Facebook e Apple vão já a partir de 1 de Janeiro “oferecer” às suas trabalhadoras que decidam adiar a opção de ter filhos, para não serem prejudicadas na progressão na carreira, a possibilidade de recorrer à criopreservação dos respectivos óvulos (recolhidos em idade fértil, para posterior utilização), disponibilizando-se para pagar os custos associados. A factura a suportar pela empresa ultrapassa os dez mil dólares (recolha e medicamentação) e com os custos de armazenamento (mil dólares/ano) pode facilmente chegar aos 20 mil (basta o adiamento da gravidez ser por uma década).

É difícil classificar a proposta. Se um empresário chega ao pé de uma trabalhadora e lhe diz claramente que tem de escolher entre a carreira ou ser mãe não temos dúvida que se trata de um comportamento condenável. Mas como classificar quando o empresário é dono de uma das empresas mais lucrativas do mundo e se limita a manifestar a sua preocupação com as mulheres que gostariam de ser mães e arriscam deixar passar a respectiva idade fértil, por questões de dedicação à empresa? Num caso cheira a crime, no segundo a responsabilidade social! Hipocrisia e cinismo por vezes compensam.

A maternidade e a carreira não são dois projectos entre os quais é preciso escolher. A mulher, qualquer mulher, seja trabalhadora têxtil, seja engenheira aéreo-espacial, tem direito a ambas. A sociedade tem de o assegurar e não pode esperar tudo da mulher (mãe, educadora, cuidadora, trabalhadora, etc…) sem custear nada. Os filhos constituem também um bem que a sociedade tem de valorizar.

Na Europa o colapso do estado social face ao inverno demográfico torna isso particularmente claro. Nos EUA, a ausência de segurança social generalizada torna esse preço a pagar ainda difuso, mas a factura surgirá mais cedo ou mais tarde. Há custos a pagar pela “produção dos filhos”? Há. Pelas empresas? Também. A sociedade é muito mais do que a soma das partes. O deve e haver social não se faz com meia dúzia de contas de merceeiro.

Embora seja difícil fugir ao consumo dos produtos das duas empresas, não tenho dúvidas que a proposta classifica em ambos os casos o tipo de empregador e são um sinal claro de uma espécie de doença social que ameaça alastrar como uma epidemia (um mundo de pernas para o ar). Fossem a Apple e o Facebook produtoras de t-shirts e nenhuma mulher as devia usar.

Do ponto de vista empresarial o adiamento da maternidade só tem vantagens. No pico da energia a mulher trabalhará “non-stop” para conseguir a máxima progressão na carreira. Só terá filhos numa idade em que terá menos capacidade produtiva e mais capacidade económica, quem sabe, poderá até mudar de vida e dedicar-se a partir dos 45 anos a essa nova etapa. No fundo, gozando uma espécie de reforma antecipada, porque é de idade de reforma que falamos quando a partir daí pensamos naqueles quinze anos iniciais da educação de um filho.

Do ponto de vista da mulher os custos serão enormes: sei por experiência própria que ter um filho aos 20, aos 30, aos 40 não é igual (tive-os em todas estas idades). Não se mantém intacta a capacidade de passar noites em claro ou a energia necessária para a educação dos primeiros anos. Abdicar da alegria de ser mãe nos melhores anos das nossas vidas não tem preço. Ficamos a saber graças à Facebook que o benefício para a empresa deste custo para a trabalhadora supera largamente os 20 mil dólares numa década. Fui três vezes contratada grávida e nessa condição mudei de emprego. Hoje ainda o seria?

De tal forma a opção pelo adiamento da maternidade não é inócua que são as próprias farmacêuticas a alertar para as baixas taxas de sucesso das gravidezes tentadas através do método da criopreservação, quando se trata de implantar os óvulos depois dos trinta anos. Alertam, aliás, as interessadas para o facto de este não ser um método de “adiamento da maternidade”, mas de substituição da maternidade natural em jovens mulheres que por estarem sujeitas a tratamentos muito violentos (quimioterapia, por exemplo) perdem muito cedo a capacidade de procriar naturalmente. Para essas a gravidez aos 30, por exemplo, ainda será uma hipótese se os óvulos forem atempadamente recolhidos e devidamente preservados. Mas depois disso reduz-se drasticamente. Aos 38 anos a taxa de sucesso já só varia entre 2 e 12% de acordo com a SART (Society for Assisted Reproductive Technology).

Isto para já não falar da insuficiência de estudos ainda existentes sobre eventuais consequências da criopreservação na saúde futura dos próprios bebés (fruto do número ainda reduzido de nascimentos conseguidos através desta técnica). Será que as duas empresas, além de divulgarem a proposta, cuidaram de alertar as possíveis “beneficiárias” das consequências do adiamento, ou passada a mensagem (quem quer progredir na empresa esqueça para já a possibilidade de ser mãe…) não há mais nada a dizer?

A notícia teve, contudo, o mérito de desvendar um outro mistério: a justificação para que num complexo imobiliário em construção, orçado em mais de 120 milhões e da autoria do conhecido arquitecto Frank Gehry, destinado a acolher os trabalhadores da Facebook, e feito mediante as contribuições e sugestões de quase 400 trabalhadores da empresa, estar prevista a construção de bares, ginásios, lojas de comida e conveniência, cabeleireiros e até um canil… mas não constar do projecto nenhum infantário.