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Graça Franco

Ainda vamos a tempo

19 set, 2014 • Graça Franco

Ainda vamos a tempo de recuperar a campanha de publicidade francesa dos anos 80: "o melhor presente para o teu filho é um irmão". Só temos 30 anos de atraso.

Ainda vamos a tempo. A senhora Merkel talvez não. Para ter mais filhos os alemães parecem exigir já muito mais do que apoios financeiros e políticas públicas por mais universais, estáveis coerentes e estruturadas que elas possam ser. Não basta “poder”, é preciso “querer” e, aqui, entram as questões culturais que se tornam tanto ou mais importantes do que as financeiras. E que exigem acção ainda mais rápida.

Ter filhos é bom. Mas, se alimentarmos o “complicómetro”, como fizemos nos últimos anos, deixaremos que os filhos se transformem sobretudo num peso. Na carteira primeiro, e na consciência depois.

Afogados em “culpas” e incapazes de corresponder à imagem ficcionada de mães e pais perfeitos, nem precisaremos de entrar em linha de conta com o factor “carreira” e rapidamente bastarão “amigos, hobbies, e viagens” para ocupar o lugar das crianças no nosso quadro da felicidade. É isso que parece ter acontecido a muitos alemães.

Por cá ainda não. Em média as portuguesas em idade fértil têm apenas 1,2 filhos, o que se traduz numa das mais baixas taxas de fecundidade do mundo. Mas, ainda assim, esperam ao longo da vida melhorar esse número e chegar aos 1,8 (perto dos 2,1 necessários à renovação das gerações).

São menos de 10% os que dizem claramente que “não têm, nem querem ter filhos”. Finalmente, a melhor notícia: o número de filhos por mulher considerado “ideal” já faz subir a média para 2,3. E este é, sem dúvida, o mais positivo e surpreendente resultado do inquérito à fecundidade feito no final do ano passado pelo INE.

Que lhes falta então para atingir o ideal? Os “custos financeiros associados” são para 67% o grande travão a ter mais filhos, enquanto 48% aponta “as dificuldades em conseguir emprego” como principal razão. Só 35% assume que não quer “ter essa responsabilidade” nem quer “perder tempo para outras coisas importantes na vida”. O egoísmo não domina.

Há por isso ainda espaço para reforço das políticas públicas de apoio à família. Quer em matéria de apoios financeiros, quer nas políticas de conciliação familiar e apoio à segurança e estabilidade do emprego, ambas com forte probabilidade de se mostrarem eficazes no combate ao inverno demográfico que nos ameaça. Portugal gasta hoje apenas 1,5% do produto interno contra uma média de 2,3% na Europa em políticas familiares. Há muita margem para crescer.

Mas, mais importante do que reforçar a despesa, é combater a ideia de que ela é sempre “um desperdício” e arrepiar o caminho na visão assistencialista e crescentemente selectiva dessas políticas. A execução orçamental de Julho com as suas poupanças de 4,5% nas verbas de abono de família devia envergonhar-nos (mesmo que a emigração explique boa parte). Se há área onde não faz nenhum sentido “poupar” nem apoiar “apenas os mais pobres” é seguramente esta.

Daí a necessidade de apoios universais, com garantias de estabilidade (no mínimo a 20 anos) e que não se limitem aos primeiros anos de vida. Estão sobretudo na classe média os que podem optar por ter mais filhos. Ora, têm sido eles os grandes pagadores da austeridade. Para esses a opção não se pode ficar pelo reforço da licença parental, infantários mais perto e escolas com horários alargados. Mais do que o IVA das fraldas e os descontos no IRS é a expectativa sobre a estabilidade das políticas, dos custos da saúde e educação, sem esquecer o das propinas das universidades.

O sucesso sueco, para só falar do exemplo mais evidente, passa não só pelas políticas de conciliação trabalho-família, como pela garantia de saúde e ensino gratuitos até ao superior.

Hoje as famílias com três ou mais filhos representam uns escassos 2% do total (quando ainda eram mais de 17% nos anos 60). Para fazer crescer este número já vamos tarde. Os modelos de família tendem a replicar-se e são cada vez menos os jovens pais que cresceram com vários irmãos. As famílias reconstituídas podem permitir essa experiência, mas não a replicam integralmente.

Cada sinal dado no sentido da não discriminação negativa das famílias com mais de três filhos será bem-vindo, mas não chega para falar de política familiarmente responsável. A prioridade não pode ser fazer os portugueses optar pelo terceiro filho, mas evitar que não consigam ter o segundo.
 
Caminhamos a passos largos, a par da Europa, para uma sociedade de filhos únicos. Isso tem custos económicos e sociais graves (a China é um bom laboratório para estudar as consequências). Mas para incentivar a maternidade é também essencial descomplicá-la. Reduzindo a carga actual sobre uma desejável perfeição que faz da educação dos filhos uma espécie de calvário para os pais.

Até por isso o segundo filho é bom para pais e filhos. Só depois dele muitos pais percebem que os filhos são parte da equação e que nem tudo o que se passa de errado com um filho “é culpa” deles.

Vivendo em função dos “pequenos príncipes”, é quase certo que estamos a fazer crescer “os grandes tiranos”. Na família, como na economia, a concorrência é sempre preferível ao monopólio. E a excepção (que as há!) confirma a regra.

Ainda vamos a tempo de recuperar a campanha de publicidade francesa dos anos 80: “o melhor presente para o teu filho é um irmão”. Só temos 30 anos de atraso.