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Graça Franco

Poucochinho. Muito poucochinho

09 set, 2014 • Graça Franco

Em finais de legislatura, o Governo promete cortar, para o ano, nas gorduras que ele próprio criou. Poupanças a sério só nas prestações sociais. Isto não nos faz pensar?

As contas da execução orçamental de Julho, com a colossal subida da receita fiscal cobrada, capaz de superar os chumbos do Tribunal Constitucional, provam que o problema da consolidação das contas públicas não se resume a bloqueios constitucionais.

O que faz falta para mudar o país não é uma nova Constituição, mas uma simples reforma do Estado, como ainda hoje, de forma certeira lembrava D. Jorge Ortiga, o responsável pela Pastoral Social, em entrevista à Renascença.

Em matéria de pobreza e exclusão social poucos como a Igreja conhecem melhor o que urge fazer. E é urgente contrariar a percepção, que até pode ser injusta, de que para lá do discurso, e na prática, se sobrecarregam “uns” para poupar “os outros”.

A reforma que falta, acrescento eu, não pode resumir-se, como já está à vista, a menos funcionários com menores salários, nem a pensionistas ainda mais pobres e com menos reformas. Fundamental é pensar verdadeiramente diferente e cortar no resto.

Como se explica que só na administração central, na óbvia rubrica dos gastos em “consumos intermédios”, o Orçamento deste ano contemple um gasto de mais de 581 milhões em “estudos e pareceres e trabalhos especializados”? Pior, como se compreende que isso se traduza num reforço em 179 milhões face a 2013 (contas de Maio da UTAO)?

É verdade que o Governo fala de uma administração a braços com privatizações complexas exigindo consultores sofisticados que o Estado não dispõe. Uma alta administração exaurida de competências na matéria (de quem será a culpa?).

Verdade também que Maria Luís já anunciou que em 2015 vai finalmente cortar aqui. Quanto? Exactamente o mesmo que aumentou, já este ano, são esses os 179 milhões inscritos nas medidas de consolidação para 2015, no mesmo quadro e a poucas linhas de distância de medidas (de que o Governo só agora abdicou!) como o impopular agravamento do IVA em 0,25% para cobrar uns modestos 150 milhões adicionais. E Paulo Portas consegue ler o quadro sem corar?

Ou seja, em finais de legislatura, mais de três anos passados, não se promete cortar finalmente nas gorduras identificadas nos tempos de Sócrates. O Governo limita-se a prometer cortar, só para o ano, nas gorduras que ele próprio criou. Poucochinho. Muito poucochinho.

E o que mais dói no labirinto das contas do Estado é a suspeição de que a sua voracidade não obedece a nenhuma lógica ou estratégia. O “monstro” de que Cavaco falava ganhou vida própria e resiste à dieta.

Faz sentido que, perante uma crise social gravíssima, como a que por estes dias serve de cenário à discussão, em Fátima, nas jornadas da Pastoral Social, seja nos apoios sociais (a começar no rendimento social de inserção, passando pelo complemento solidário para idosos, e acabando nos abonos de família e nas verbas da acção social) que se conseguem finalmente cortar e/ou conter os gastos?

Claro que há disparos no programa de emergência social com um reforço de 15 milhões em sete meses a fazer subir os gastos para os modestos 130 milhões.

Mas, até isto, nos deve dizer alguma coisa sobre o “assistencialismo dominante” por contraponto ao desuso dos termos “direitos” e “apoios sociais”.

No exacto momento em que organizações como a Caritas já não conseguem ter mãos a medir até para pagar “rendas de casa” a milhares de famílias e denunciam uma crise social sem precedentes, quando os bancos alimentares rebentam pelas costuras e legiões de novos sem-abrigo povoam as noites das cidades, é nos subsídios de desemprego que se consegue um corte de mais de 15% (menos 250 milhões) quando estava previsto gastar mais 4%?

Claro que o desemprego desceu e está felizmente aquém do previsto. Mas mesmo que a emigração, a par de uma ainda ténue maior criação de mais emprego, tenha ajudado a inverter o fenómeno, é verdade que dos perto de 800 mil que ainda estão desempregados muito menos de metade beneficiam de subsídio. E os outros quase 400 mil sem emprego e sem auxílio?

Não deveriam as “poupanças “ realizadas nesta rubrica ser canalizadas de imediato para novas medidas de combate à exclusão e para o seu reforço?

Em vez disso: apertaram-se os critérios?! E isso não nos aperta o coração? Como é possível acreditar que não havendo emprego disponível o problema ao desincentivo da sua procura está no apoio recebido? Como não perceber que há limites tão baixos que tornam impossíveis os gastos inerentes à própria busca de qualificação e empregos?

Como é possível que o valor médio do subsídio de desemprego atribuído se tenha reduzido, face a 2013, em cerca de 20 euros caindo quase 5% do seu magro valor a rondar os 400 euros?

Isto não nos envergonha? Somos capazes de celebrar poupanças que passam pela redução em mais de 50 mil idosos do número de beneficiários do complemento solidário com as verbas atribuídas em orçamento a cair 17% (muito além dos 2,2 previstos)? Fruto das chamadas “novas regras”?

Não nos assustamos quando constatamos que há menos 40 mil crianças e jovens a receber abonos, com poupanças a atingir 4,5% contra uma expectável estagnação? Terão todas deixado o país acompanhando os pais? Isso não é sinal suficiente para arrepiar caminho?

Não basta ir buscar 100 milhões de taxas solidárias à banca para garantir que os ricos é que pagam a crise.

Depois de três anos de governação exige-se mais do que a profissão de fé nos benefícios da gestão da coisa privada e nos malefícios da gestão da coisa pública. Uma narrativa tão pobre quanto a que durante décadas, e sem remorsos, nos habituou o PS (pela inversa…).

Há cortes que devemos exigir e outros que devemos dispensar.