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Graça Franco

Os juízes e o adolescente

26 ago, 2014 • Graça Franco

Talvez os juízes tenham subestimado a convicção e até a teimosia do Governo. Talvez nunca tenham imaginado que ele adoptaria esta técnica de confrontação sistemática, tipo adolescente a testar os limites impostos pelos pais. Hoje parece evidente que o adolescente ganhou.

O Governo prepara-se, mais uma vez, para aprovar mais medidas que tentem suprir decisões do Tribunal Constitucional. Tem sido, assim, nestes três anos a relação entre estes dois poderes e assim parece ir continuar até ao fim da legislatura.

Por não ser jurista, resisti a criticar o Tribunal Constitucional em, pelo menos, oito acórdãos. Foi obra. Sobretudo porque a resistência sobreviveu à leitura penosa e atenta de muitas centenas de páginas no mais denso juridiquês. Ao nono desesperei. No Palácio Ratton tudo, literalmente tudo, pode passar ou ser chumbado sem que se descortine uma pequena linha de coerência. A Constituição não se apresenta para cumprir mas para ir, ou não, cumprindo em função da mais subjectiva avaliação das circunstâncias.

O Governo decide inconstitucionalmente, mas já não vai a tempo de encontrar alternativas? Deixa-se passar. Ao eventual cábula, o professor impõe apenas um novo trabalho para casa: façam lá uma reforma da Segurança Social “a valer” que a constitucionalidade fica garantida! Isto não é uma decisão de um tribunal, é uma confusão total. Ou seja, no Palácio Ratton, temos Portugal no seu pior.

Mea culpa. Considerei tempo demais (contra tudo e quase todos…) que alguns dos acórdãos do colectivo dos juízes eram “claríssimos”. Pareceram-me totalmente razoáveis. Sobrevalorizei o circunstancialismo levada pelas minhas preocupações económicas. Defendi o bom senso contra o que me parecia radicalismo legalista. Subestimei que a leitura jurídica não pode subordinar-se aos considerandos de tempo e lugar sob pena de se anular em simultâneo a própria justiça e a desejada eficácia.

Nada dispensa a clareza da interpretação da letra da lei. Cumpre? Não cumpre? Devia cumprir. Ponto final. Sem delongas. Sem moratórias. Sem “que sim mas que também…“. De preferência quando se constata o incumprimento devem os juízes dizer simplesmente que o legislador “viola o artigo número tal”, agradecendo-se que coloquem o conteúdo do texto violado devidamente escarrapachado no acórdão. Para que não restem dúvidas.

Não cabe aos juízes procurar políticas alternativas, mas defender a lei fundamental. A Constituição, mesmo imperfeita, até ser alterada é muito simplesmente para cumprir. Ao tribunal cabe simplesmente zelar para que isso se faça.

Não pode tolerar-se mais o zigue-zague permanente. Tudo começou na autorização excepcional dos cortes de salários - logo na governação Sócrates - que muitos desculparam perante o estado de emergência a que isto chegara. Depois vieram as autorizações de cortes excepcionais das pensões por via da CES e congéneres (dando de barato que pudessem mesmo ter dimensão confiscatória) ainda aí se tentou ver bondosamente a prova de uma certa maturidade democrática. Puro engano…

Talvez os juízes tenham subestimado a convicção e até a teimosia do Governo. Talvez nunca tenham imaginado que ele adoptaria esta técnica de confrontação sistemática tipo adolescente a testar os limites impostos pelos pais. Hoje parece evidente que o adolescente ganhou.

No último acórdão a argumentação dos juízes deixou de fazer o menor sentido. Não é tanto a apreciação subjectivo-politica subjacente à decisão (afinal o direito Constitucional é sempre um ramo do direito político), é a total arbitrariedade associada ao deixa passar inconstitucionalidade aqui, aceita prolongar inconstitucionalidade acolá, limita-se a impedir a inconstitucionalidade futura acoli.

A teia de total incoerência e imprevisibilidade tecida pelos próprios juízes acaba por os apanhar a todos nas respectivas malhas. Chegados aqui, o Governo, que devia simplesmente figurar como “ o mau da fita”, passa a figurar legitimamente como “vítima”, sendo os juízes uma espécie de algozes que tanto ameaçam com a prisão perpétua e a pena capital como estão dispostos a deixar que as malfeitorias se eternizem desde que infractores paguem fiança e se apresentem semanalmente a Tribunal.

Quando não há coerência perde-se a razão. O Tribunal Constitucional provavelmente por “bons motivos” perdeu a sua, ou pior ainda nunca a teve. Os portugueses não lhe agradecem. Estão fartos. O Governo muito provavelmente pelos piores (a começar nessa cegueira ideológica que o leva a insistir na “guerra dos grisalhos contra os imberbes” a que se soma a falta de imaginação) ganhou-a. Pior para todos.