Tempo
|

Graça Franco

Abençoado dia

24 abr, 2014

Por pouco que hoje nos pareça o salto de progresso foi enorme. Além disso não há revoluções sem erros e hoje ainda pagamos o preço de muitos iniciais.

Abençoado dia. Foi assim que o cabo José Alves Costa o classificou, e bem. Abençoado. Abençoado cabo, acrescento eu. Abençoado Adelino que o descobriu, com o Alfredo Cunha, retirando-o à categoria de soldado desconhecido e permitindo que publicamente lhe possamos prestar homenagem, como já fazíamos a Salgueiro Maia. Dois homens unidos nessa coisa magnífica que se chama coragem e nessa não menos importante que se chama bom senso.

O cabo Costa foi muito simplesmente um dos “rapazes dos tanques”. E que fez ele? Escolheu sabiamente não desafiar a autoridade entorpecida de um Brigadeiro que, estando do lado errado da História, lhe tinha dado a mais desastrada ordem: “Fogo!”. Pior, fogo ou a ameaça “de um tiro na cabeça”. E ele que fez? Deitou água na fervura e, imperturbável, deu a única resposta possível ao superior; embora cabo apontador, não estando garantida a sua sabedoria sobre o poder de fogo, tudo o que ele podia prometer, prometeu, “vamos ver o que podemos fazer”. O plural majestático perfeito.

E depois? Decidiu prudentemente enfiar-se no “tanque” e ficar lá devidamente blindado, quietinho com os companheiros, ao abrigo da fúria do Brigadeiro e à espera que a história passasse de mansinho ao seu lado. Protegendo assim o silêncio que deve servir de escolta à própria História. O cabo apontador soube perceber, na sua candura rural, que naquele exacto momento tudo o que se podia (e deveria fazer) era isso mesmo: nada. E com isso evitar que a liberdade tivesse o altíssimo preço do sangue daqueles rapazes.

Não se acobardou. Sabia que a História, não raras vezes, gosta de jogar às escondidas e não premeia o lado certo. Se assim fosse tinha, ali mesmo, com a sua sábia omissão, dado cabo da respectiva vida. Arriscou.

E a passeata de Santarém fez-se revolução. E a liberdade chegou finalmente envolvida em canções e flores. Sem ódio, sem vingança, sem nada que fizesse envergonhar aqueles rapazes. Abençoados. Abençoado Alferes que conquistou uma tal autoridade entre os soldados que, mesmo depois de preso, assegurou que cumprissem a recomendação que lhes deixara em herança: “ninguém dispara sem a minha ordem”. Ninguém disparou. A começar no cabo Costa, que gostava tanto da própria cabeça que preferiu arriscar perdê-la a cumprir a ordem tresloucada de um Brigadeiro de cabeça perdida. Em que outro país do mundo seria possível assistir, quarenta anos passados, ao cordial cumprimento público entre Otelo e Ana Maria Caetano a que assistimos esta semana na Gulbenkian?

Sou jornalista. Nunca poderia tê-lo sido antes do 24 de Abril porque a minha cabeça e a minha pena são liberdade-dependentes. Casada com um militar (que por esse Abril já marcava passo…). Nunca precisei, como tantas mulheres antes de mim de adormecer a rezar para que voltasse vivo da guerra. Os meus filhos nasceram e cresceram num país em paz, sem censura, sem PIDE, com direito de voto universal e eleições livres. Vale a pena rever a reportagem multimédia da Dina Soares e da Teresa Abecassis sobre o Aljube “a prisão do pensamento” aqui na RR. A liberdade, não tem preço, e recebemo-la, de mão beijada naquele dia, de um punhado de homens e do seu bom senso. Obrigada.

Na Bélgica a minha família viveu anos de trabalho intenso beneficiando do novel estatuto de cidadãos europeus de pleníssimo direito. Para tantos, antes, Bruxelas fora apenas local de refúgio e terra de exílio. Abençoada opção pela União Europeia que serviu de fiel amarra da nossa democracia. Única estratégia dos últimos 40 anos? Provavelmente sim, mas haveria, perdido o Império, estratégia mais certa? Não creio.

Falta muito para cumprir o sonho? Falta. Mas as horas de emergência são más companheiras. O filtro financeiro empequenece a leitura do passado e do futuro. Somos melhores do que parecemos na hora do sobressalto e estamos a viver mais um. Não é o primeiro. Não será o último. Quarenta anos não se resumem à espuma dos dias dos últimos três, nem sequer dos últimos dez.

Por pouco que hoje nos pareça o salto de progresso foi enorme. É certo que nunca mais voltámos a crescer ao ritmo do final dos anos sessenta e passamos de um excedente orçamental para uma situação em que o défice das contas públicas nos ameaça com doença crónica. Além disso não há revoluções sem erros e hoje ainda pagamos o preço de muitos iniciais.

Desindustrializamos e do pleno emprego passamos para mais de 15 por cento da população em busca dele, mas não precisamos de desfiar muitos indicadores para perceber que o país deu, ainda assim, um salto de gigante no caminho do desenvolvimento: a nossa mortalidade infantil ( das mais altas da Europa) é agora das mais baixas do Mundo, a riqueza per capita simplesmente duplicou, apesar do envelhecimento acelerado estão hoje inscritos no ensino secundário dez vezes mais alunos do que em 1973 e de um quarto da população analfabeta passámos a ter ainda mas “só” cinco por cento.

Continuamos a sentir a falta de médicos e protestamos contra as falhas do SNS? Esquecemos que sua própria existência já é uma bênção, e enquanto o número de médicos quintuplicou a despesa em saúde triplicou entretanto.

É verdade que, como ainda esta semana recordava D. Manuel Clemente, parecem ainda estranhamente actuais os apelos da Igreja lançados na carta Pastoral dos Bispos portugueses de Maio de 1973 onde a propósito dos dez anos da encíclica "Pacem in Terris", do Santo Papa João XXIII  (é já no próximo fim-de-semana a sua canonização) se apelava aos católicos para que  não permanecessem indiferentes “ perante múltiplas situações de injustiça que impedem o correcto desenvolvimento dos homens” e se denunciava “a condição infra-humana em que tantos vivem, diminuídos por graves carências alimentares, habitacionais, sanitárias, de emprego, educacionais e culturais”.

Quarenta anos depois poderiam os actuais bispos subscrever de novo, em muitos pontos, o triste diagnóstico. Criticar de novo “a expansão de uma economia que não está ao serviço de todos” e “a oferta e aceitação de condições de trabalho despersonalizantes, nas quais o homem é equiparado à máquina”. Na luta contra a desigualdade, e a pobreza por muito que se avance é sempre pouco.

Dói esta actualidade? Dói. Pior ainda, porque há 40 anos se exigia dos católicos que não se resignassem perante o atraso na concessão de direitos que parecia elementar conquistar e agora urge mobilizá-los para impedir um verdadeiro retrocesso civilizacional que cegos pelo medo dos efeitos da crise e da globalização parecemos demasiado impotentes para conseguir travar.

Mas mesmo que depois dos cravos nem tudo tenham sido as rosas prometidas, abençoado dia! 

*Titulo inspirado na última frase da crónica de Rui Tavares sobre o mesmo tema.