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Pedro Leal

A Bósnia, a Grécia e as arritmias da história

09 jul, 2015 • Pedro Leal

A reportagem da Catarina Santos, "20 anos são dois dias", publicada esta quinta-feira, descreve a dimensão intemporal da tragédia e conduz-nos pela noção de tempo relativo.

Algo estava errado. A cadência parecia-me anormal e a percepção não captava a noção lógica do tempo: segundos, minutos, horas. Foi em 1992, em Sarajevo.

A questão não estava em perceber se o tempo existe para lá do homem, como se discute na filosofia. A questão estava em perceber uma nova organização do tempo, caótico, que decorria, como um gerúndio em arritmia, mesmo à minha frente.

Perdi-me. Não percebia. A cadência não era a dos segundos… Era a cadência do caos, do intercalar entre o silêncio e os estrondos da guerra. E dia após dia, uma nova métrica, uma nova cadência.

A partir dessa altura percebi melhor a luta da professora de filosofia do liceu quando nos tentava meter Kant nas nossas cabecinhas excitadas. E aprendi uma lição: não há escalas para o limite. Quando julgamos que foi atingido, descobre-se a possibilidade de um novo patamar. E, nova aula prática de filosofia, percebi no terreno a ligação do tempo com o espaço.

Foi assim com a queda do muro de Berlim, não parecia possível e aconteceu. Foi assim com o desmoronar da URSS, não parecia possível, aconteceu e ainda hoje sentimos, na Ucrânia, as arritmias desse tempo, no tal gerúndio que prolonga um presente passado.

Foi assim na Bósnia, não parecia possível uma guerra numa cidade que anos antes recebeu os Jogos Olímpicos de Inverno, mas aconteceu e ainda hoje se prolonga num conflito higiénico, politicamente balizado, mas violento de memórias.

E é assim na Grécia. Os dias "D" multiplicam-se, e há sempre mais um tempo impossível, mas presente, sem segundos, minutos ou horas. Tal como na Bósnia, em 1989, poucos perceberam o surgir de um novo tempo – o da guerra – todos acreditavam que, no último minuto, a paz estaria lá. Mas, naquele espaço, não esteve.

Esta semana assinalam-se os 20 anos do massacre de Srebrenica, na Bósnia e Herzegovina. Há duas décadas, o espaço e o tempo entraram em ruptura e a Europa do século XX viveu mais um genocídio. A reportagem da Catarina Santos, "20 anos são dois dias", publicada esta quinta-feira, descreve a dimensão intemporal da tragédia e conduz-nos pela noção de tempo relativo.

A cadência do tempo e do espaço na Bósnia são um alerta para o que assistimos na Grécia. Os limites são diariamente ultrapassados e conhecem sempre um novo patamar.

A noção da história está a escapar aos líderes europeus, sejam da extrema-esquerda, da esquerda, do centro, da direita ou da extrema-direita. Não percebem ainda que algo está errado; em determinados espaços devem evitar-se determinadas cadências.

O risco são as arritmias da história se se insistir neste tipo de rupturas: o intercalar do silêncio, agora ou amanhã, hoje ou num outro tempo, acabará por chegar.