Emissão Renascença | Ouvir Online

Só a mudança travará os extremismos

23 mar, 2015

A pré-guerra já está no discurso, porque começa a estar nas “ ideias”. É importante travá-la, ainda aí.

No próximo domingo, talvez Sarkozi consiga a almejada vitória das Departamentais francesas, “essencial à alternância”, mas, ao consegui-la, arrisca-se a ganhar apenas uma batalha sem garantir que, daqui a alguns meses, não perderá a guerra contra o chamado “nacionalismo de exclusão”. Para esta vitória de Pirro, conta com a ajuda já anunciada do PS de Hollande (que não hesitou em apelar ao voto na UMP sempre que isso se mostre essencial à derrota de Marine Le Pen).

O ex-Presidente francês, que recusa pagar ao PS na mesma moeda sempre que este enfrentar sozinho a Frente Nacional, mostra, no entanto e até aqui, que está muito longe de perceber o verdadeiro filme. O problema não se resume em assegurar o rotativismo do centrão francês, que tanto o anima no regresso à política activa. O perigo está na incapacidade de os partidos que o constituem impedirem a fuga do eleitorado que procura políticas diferentes e exige efectiva mudança. É esse eleitorado abandonado, desiludido e descontente que está literalmente a ser empurrado para os extremos. Não apenas em França, mas também ali.

Marine não conseguiu os 30% nem o primeiro lugar, garantido pelas sondagens. Mas conseguiu (com candidatos quase totalmente desconhecidos) o seu melhor resultado de sempre. Uns 25,7% que a colocam como segundo maior partido (à frente dos 21% conseguidos pelo PS, no Governo, e a escassos três pontos da coligação de direita da UMP). Pior, em muitos casos: Marine consegue à primeira volta a vitória imediata em vários cantões, com resultados a rondar os 30%, e fica dez pontos acima das eleições de 2011.

Qualquer vitória nas “Departamentais”, correspondentes às autárquicas francesas, é um trunfo adicional para a subida em flecha do partido. Marine tem conseguido que a gestão autárquica dos seus poucos eleitos se paute por um inegável sucesso popular, com idosos e jovens numa aliança improvável a louvarem a gestão próxima e participada dos seus novíssimos autarcas. Limpar cidades e aumentar a segurança das ruas pode melhorar rapidamente o seu score eleitoral e Marine sabe-o como ninguém.

Como também sabe que tem de descolar do passado quase fascista do pai. A entrevista dada ao Expresso, desta semana, é paradigmática desse cuidado (na preocupação expressa contra o crescente anti-semitismo e na cuidadosa recusa de tudo o que possa ser visto como islamofobia). Ninguém de bom senso defende a “guetização” dos imigrantes muçulmanos e as suas supostas reivindicações do direito a impor a sharia em França. Ora, quando o limite é colocado aí e se exibem os apoios de múltiplas comunidades de emigrantes integradas, como a portuguesa, fica difícil acusá-la de xenófoba radical.

Marine faz, aliás, questão de dizer que não se vê à direita da direita. “Não sou por menos Estado, não sou por mais privatizações. Não sou pelo ultraliberalismo. Não sou por essas leis de mercado que eu considero deverem ser controladas porque, caso contrário, conduzem ao esclavagismo,” enfatiza mesmo, tentando provar que “ não é de esquerda nem de direita”, mas apenas “patriota” e até pode ser vista como “de extrema-esquerda para Sarkozi e de extrema-direita para Hollande.

Neste discurso fica evidente a multiplicidade de pontos de contacto entre a FN e uma série de partidos de extrema-esquerda (do Syriza ao Podemos espanhol, que vai já ocupar, depois das eleições deste fim de semana, 15% dos lugares disponíveis no Parlamento da Andaluzia). Convergem no discurso anti-euro, anti-austeridade, pró-nacionalização da banca, anti-globalização, anti-poderes difusos da alta finança, anti-troika, anti euro-burocracia-europeia, e mesmo “anti-casta” (essa formulação comum a toda a contestação da promiscuidade entre política e interesses dos ditos partidos do sistema).

Para perceber melhor o que pode estar em causa, vale a pena ler hoje João Carlos Espada, no Público, com a sua análise da entrevista de Marine ao Expresso centrada na desconstrução da visão da Europa como “uma prisão “, em que Durão Barroso não seria mais do que o “ chefe dos guardas prisionais” e Merkel a “directora” rodeada de lideres europeus reduzidos à qualidade de “perfeitos da União”, que, em vez de defenderem os interesses dos respectivos povos, “recebem ordem e as executam”.

O professor vê mais longe notando: "Para as famílias políticas democráticas, o critério de representatividade é a eleição em liberdade. Para as famílias políticas não democráticas, o critério de representatividade reside na ‘defesa dos direitos do povo’ - de que essas famílias são os verdadeiros intérpretes, e que em regra interpretam como um interesse uno”. E porque “ as ideias têm consequências” observa que o único país elogiado pela líder da Frente Nacional é a Rússia de Putin, para concluir, as ideias da “ velha esquerda e da velha direita autoritárias da década de 30” reaparecem hoje “ na linguagem do Syriza , na Grécia e da Frente Nacional em França”. Vale a pena parar para pensar não em como garantir alternância mas em como promover a necessária mudança essencial à preservação da própria Democracia.

A pré-guerra já está no discurso, porque começa a estar nas “ ideias”. É importante travá-la, ainda aí.