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Graça Franco

A lista VIP que antes de o ser já não era

19 mar, 2015 • Graça Franco

Já percebemos que atrás de qualquer erro está sempre um director-geral. E atrás da prova do erro está vezes demais um jornalista. Até lá, não passa nada. Se já não se consegue fingir que não aconteceu encontra-se o mínimo bode expiatório comum. Mas, atrás dele, continua o vazio.

A lista de contribuintes VIP existe ou não? Se não existe como é possível que Vitor Lourenço (chefe de serviços de auditoria da Autoridade Tributária) tenha referido a sua existência perante praticamente 500 pessoas, em pelo menos duas acções de formação diferentes, com exemplos concretos da eficácia da sua acção e a identificação clara de um “antes” e um “depois” da respectiva existência?

Se existe, como é possível que as únicas demissões depois de dez dias de desmentidos do Governo sejam as do director geral da Autoridade Tributária e do seu subdirector? Com a agravante de António Brigas continuar a dizer que a lista “nunca existiu”, embora afirme na carta de renúncia que uma medida idêntica estava efectivamente em estudo e tinha até “parecer positivo” do seu subdirector-geral que só algumas horas depois decidiu imitar o chefe.

No mínimo podemos queixar-nos de que o Governo agiu, nesta matéria, com evidente falta de diligência na busca da verdade. Diria o bom senso que, perante a denúncia concreta do Sindicato dos Trabalhadores dos Impostos, baseada no relato de acções de formação com local, hora e número de presenças confirmadas e um orador absolutamente identificado – Vitor Lourenço, de que eram públicas declarações claras e concretas –, se perguntasse ao dito formador esta coisa simples: o senhor disse o que disse? E isso é verdade? Se é, quem autorizou aquilo a que chama “lista” ou “pacote”? Senão onde está o seu pedido de desculpas e a sua carta de demissão?

Quando se esperavam as respostas a estas quatro perguntinhas básicas o Governo começa a enredar-se em explicações genéricas ao estilo “perguntada, a autoridade tributária nega a existência de qualquer lista”. E à pergunta seguinte: então quem se demite? Nada.

Os cuidados semânticos eram óbvios. Não se dizia nunca claramente: a lista não existe, preferindo-se sempre a negativa vaga “os serviços garantem que não existe”. Como se “os serviços” fossem uma entidade autónoma e como se a vontade de contrariar a respectiva autonomia, caso ela existisse, fosse efectivamente nula. Um bocadinho ao estilo, ninguém lhes pediu que fizessem mas se acaso se lembraram de fazer não terá sido mal pensado. Isto é claro desde que não se soubesse. Ou seja o problema parecia estar mais no saber-se do que no fazer-se.

Segunda-feira de manhã quando já se multiplicavam as vozes a atestar a presença na acção de formação referida pelo sindicato e a veracidade do relato do que ali tinha sido dito, o secretário de estado, Paulo Núncio, questionado por vários jornalistas, ainda achava que não havia sequer motivo para abrir nenhum inquérito. Como é possível?

É verdade que horas depois já a ministra das Finanças o desautorizava anunciando o início do processo de averiguações embora interno (o que deixava no ar mais uma vez a hipótese de que os serviços ajuizassem em causa própria).

Ontem, finalmente, a Visão pôs-nos a todos a ouvir as declarações de Vitor Lourenço. Curioso que o formador não se tenha perguntado se a existência da lista (além de eficaz na identificação do acesso indevido aos dados fiscais dos contribuintes ditos “VIP”) era coisa benigna ou indiferente em termos ético- legais.

Mas a ausência de questionamento sobre estas matérias é cada vez mais comum, como se a doutrina oficial fosse a de que “os fins justificam os meios” ou numa versão ligth “não nos pagam para pensar”. Duas “normalidades” perigosíssimas.

Empurrados pela investigação jornalística surgem finalmente as primeiras demissões. O texto de renúncia ao cargo de António Brigas acaba por confundir mais do que aclara. Ao reconhecer que não existe, mas estava a ser estudada a criação de uma eventual lista (sem conhecimento do Governo) e ao dizer que o seu subdirector geral já tinha mesmo dado parecer positivo à sua criação a coisa assume então foros de total inverosimilhança.

Resumindo, quem parece genuinamente não ter exactamente percebido o que se passou é afinal o primeiro demissionário. Compreende-se mal como o seu subordinado precisou ainda de mais umas horas para decidir acompanhar o chefe. Felizmente acompanhou.

Pouco interessa a verdade formal. Ninguém está interessado em apurar se alguma vez algum membro de Governo se dirigiu ao chefe dos Serviços (sejam eles de informática, de auditoria, ou simplesmente da autoridade tributária ou outros…) munido de uma lista de nomes de políticos notáveis ou personalidades mediáticas em punho exigindo que aqueles contribuintes, em concreto, ficassem ao abrigo de uma ilegítima curiosidade fiscal por parte dos serviços. Direito que lhes assiste como a todos nós. Uma cena assim também não é muito verosímil.

O que os portugueses querem e merecem conhecer é a verdade real. Ou seja, o que é importante saber é se alguém do Governo, ou a seu mando, se dirigiu à administração (seja a que serviços forem…) exigindo saber “na hora” se alguma violação de sigilo fiscal era feita por exemplo aos contribuintes relacionados com o caso “Monte-Branco”, “BES”, “Tecnoforma”, “Furacão” ou congéneres…É que um pedido genérico deste tipo, não consubstancia a ordem de elaboração de uma lista mas, em rigor, os serviços só poderão responder positivamente elaborando o quê? A dita lista.

Já percebemos que atrás de qualquer erro está sempre um director geral. Pior do que isso atrás da prova irrefutável do erro está vezes demais um jornalista. Até lá, não passa nada.

Se já não se pode mais fingir que a coisa não existe, o que se busca é o “mínimo- bode expiatório” comum. Por detrás dele contínuo o vazio. A responsabilidade política nunca se efectiva. Queixamo-nos que em democracia continua a ser possível escolher, na expressão nortenha, “o grande sacana” (Cadilhe “dixit”) mas não nos indigna que o sistema continue a funcionar com base no “médio veraz”, o que sem mentir vai, enquanto pode, contornando a verdade. Há quem se contente em erradicar os mentirosos compulsivos. É pouco.