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Graça Franco

O fora da Corte

10 mar, 2015

Em 50 anos de carreira empresarial, Belmiro passou da liderança de um negócio médio de raiz industrial, ligado aos conglomerados de madeira, para o governo de um gigante da indústria e dos serviços, com presença efectiva em mais de 67 países.

Em Portugal nunca foi tão evidente a debilidade daquilo a que Ernâni Lopes não se cansava de chamar “a crise da elite dirigente”. Há, todavia, excepções e Belmiro de Azevedo é uma delas. Até na forma exemplar como, desde 2007, preparou a saída dos cargos executivos do grupo que agora se concretiza. Como empresário, criou um Império a que Portugal fica a dever alguns saltos de modernidade numa multiplicidade de valências (da comunicação social à grande distribuição, passando pela industria do lazer e pelas telecomunicações).

Não sei se Paulo Azevedo é, como aos olhos do pai Belmiro, o “melhor gestor português,” mas uma coisa é certa: se não for o melhor, está, por direito próprio, e não por herança alheia, entre os melhores. Por isso, a co-presidência do grupo não lhe é dada por favor e a partilha de poder com um outro “quadro–Sonae” não pertencente à família (Ângelo Paupério), seu ex-vice-presidente chegará para lhe lembrar, se necessário, que é por mérito e não por direito sucessório que ocupa o lugar.

A originalidade do novo modelo de Governo bicéfalo (testado em raros exemplos como o do Deutsche Bank) não tem sucesso assegurado e vai ser preciso esperar para ver se efectivamente resulta, mas, pelo menos, faz jus à promessa de que no grupo não há lugares cativos para os filhos do patrão.

Em 50 anos de carreira empresarial, Belmiro passou da liderança de um negócio médio de raiz industrial, ligado aos conglomerados de madeira, para o governo de um gigante da indústria e dos serviços, com um volume de vendas de quase 5 mil milhões/ano e uma presença efectiva em mais de 67 países, tão díspares como a Rússia, a Turquia a Suíça, a Alemanha ou a Itália.

Com cerca de 40 mil empregados, a Sonae não se limita apenas a desempenhar o papel de um dos grandes empregadores nacionais. A cultura Sonae, de que Belmiro se orgulha, é também uma escola de formação de liderança de quadros de gestão que contraria frontalmente o que de pior tem feito caminho em Portugal e que, infelizmente, explica boa parte das nossas debilidades económicas. Houvesse mais Belmiros de Azevedo e Portugal seria diferente para muito melhor.

Na Sonae, não há lugar para tudo aquilo a que estamos assistir com os colapsos do BES e da PT, e que nos faz sofrer com vergonha alheia: administradores verbos de encher, jovens “boys” cegos pela ambição e pagos a peso de ouro para cumprirem as ordens do patrão sem se questionarem nem o questionarem, “yes men” bem-parecidos e bem-falantes de vistas curtíssimas. Verdadeiras Wikipédias da gestão.

Na cultura Sonae, pelo contrário, premeia-se o trabalho e o mérito e recomenda-se que haja vida, cultura, mundo, hobbies, desporto, para além do trabalho.

Não se confunde vestir a camisola com bajular o chefe. Exige-se capacidade de criticar e de encaixar as críticas de directores/colegas ou subordinados, premeia-se a vontade de arriscar, mas também a capacidade de “resiliência” na busca do sucesso sem esquecer a capacidade de emendar e aprender com os erros cometidos, estimula-se a criatividade e autonomia de pensamento e, evidentemente, o sentido de responsabilidade partilhada.

Não é certamente um grupo perfeito, mas os defeitos correntes na maior parte dos negócios são ali, pelo menos, combatidos ou residuais. Quem sai da Sonae (e eu que por lá passei sei que isto é verdade…) sai um trabalhador diferente e para melhor. A formação e a superação individual fazem parte integrante do negócio.

Esta cultura que recusa os ganhos de competitividade pelos baixos salários e implica o verdadeiro reconhecimento prático do valor dos trabalhadores (que se assume que devem ser bem pagos, sobretudo na base e no topo, sem falsos igualitarismos que desincentivam a justa ambição) faz jus a uma liderança que se afirma também pela liberdade e independência dos vários poderes (do Governo à oposição). Um dos poucos a que podemos chamar “fora da Corte”.

Como proprietário de um jornal de referência (que este mês comemora 25 anos), Belmiro merece também a gratidão dos portugueses e, sobretudo, da totalidade dos jornalistas. Nunca se serviu do jornal diário que ajudou a criar. Suportou estoicamente a independência do seu jornal,mesmo quando os seus interesses legítimos eram alvo de polémica na praça pública, respeitando integralmente a independência editorial dos seus trabalhadores. Ao seu serviço, fui dos que muitas vezes escrevi contra os seus interesses, dando-me ao luxo de nem sequer pensar na questão. E isto não é apenas raro, é um bem precioso numa democracia.

Belmiro, não se reforma ainda. Com 50 anos de carreira andados e 77 anos já vividos, vai, simplesmente, continuar a exigir que lhe prestem boas contas enquanto accionista e anunciar o seu empenho em novos projectos. Ainda bem.