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Graça Franco

História de um cavalo alimentado a omeletas

20 jan, 2015 • Graça Franco

O pico da gripe nem sequer chegou. Agora que o sistema parecia já habituado a funcionar com um nível incrivelmente reduzido de recursos, vemo-lo a colapsar à beira das eleições, com estrondo e debaixo dos holofotes.

Sem séries de dados comparáveis é impossível saber se as sete mortes registadas nos últimos dias nas urgências por alegada demora no atendimento são, afinal, muitas ou poucas. Mas, uma coisa é certa: são, seguramente, demais. Num sistema de saúde que se espera civilizado, morrer, sem assistência adequada, literalmente perdido em plena urgência hospitalar e depois de horas e horas de espera agonizante, é simplesmente intolerável.

Mesmo descontado o efeito de amplificação mediática em ano eleitoral, são mortes que, sobretudo, nos devem fazer questionar seriamente sobre os custos da incapacidade de, ao longo das últimas décadas, se fazer face ao poderoso lóbi médico bloqueador da formação atempada dos novos clínicos.

Existissem médicos de família suficientes e uma rede de cuidados primários efectivamente estruturada e as urgências deixariam de ser o actual misto de "santa casa da misericórdia" e de único centro de saúde à mão de semear.

O financismo dominante nos últimos três anos deixou apenas a descoberto a verdadeira doença crónica do sistema que está aí à vista, a começar no enviesamento das notas "para entrar em medicina", passando pelo êxodo forçado de muitos dos nossos melhores alunos para sistemas de ensino estrangeiros e desembocando no défice crónico de profissionais de saúde em todo o sistema, mau grado a difícil reimportação massiva de clínicos dos mais diversos países.

Isto para já não falar da escassez de cuidados primários reflectida na exportação de cursos de enfermagem completos para os hospitais ingleses e alemães em que não fica empregado no país quase nenhum finalista para contar a história.
Os dados revelados pelo presidente do INEM em entrevista, esta terça-feira, ao jornal "i" fazem temer o pior. No dia de Ano Novo, as chamadas de emergência saltaram de uma média diária da ordem dos 3.400 para os 5.000, o que, a somar a uma percentagem de baixas médicas superiores "em 50%" ao que seria expectável, justificam por si só o panorama de autêntico caos no serviço que fez a abertura de muitos telejornais. Mas esta crise conjuntural apenas se soma ao efeito estrutural bem patente nos crescimentos "de 5 a 10%" registados ano após ano no número de chamadas recebidas.

E o que explica este crescimento exponencial e imparável de pedidos de socorro? Sem dúvida, o efeito conjugado de uma multiplicidade de factores, a começar no envelhecimento da população, passando pelo crescente isolamento da população idosa, sem esquecer a falta de enfermeiros em mais de 3.000 lares de idosos. Onde falta o acompanhamento das doenças em fase embrionária não se consegue evitar o aumento das situações de emergência. Tudo isto a somar a uma reorganização da rede cuja racionalidade e eficácia parece dia a dia deixar mais a desejar.

É evidente que, em ano eleitoral, os vários lóbis tendem a parecer conjugados para potenciar o efeito de pressão sobre o poder político, mas quando para a solução do problema se acena com a abertura de concursos para recrutar mais de 300 novos profissionais (85 dos quais técnicos de emergência médica) há um implícito reconhecimento de que o subfinanciamento é real e há muito se passou a linha vermelha do emagrecimento dos serviços sem perda de qualidade para os utentes (como sempre prometera o próprio ministro).

Num quadro de pessoal de 1.300 funcionários do INEM um reforço de pessoal da ordem dos 25% (12% no pessoal de emergência) surge afinal com carácter de urgência. Este simples anúncio é o reconhecimento de que o serviço está, de facto, a funcionar com muito menos recursos do que seria desejável e isso não é apenas grave, mas gravíssimo. E, pior do que isso, se lhe somarmos o anúncio da contratação imediata de alguns milhares de novos médicos para as mais diversas áreas do sistema, fica também provado que a falta de meios está longe de ser pontual.

Os valores conhecidos dos salários de muitos profissionais (menos de 700 euros para quase metade do pessoal total do INEM) também não auguram nada de bom sobre a qualificação e nível de motivação que deveriam estar associadas a uma profissão sujeita a um dos mais elevados níveis de stress e da qual dependem literalmente as nossas vidas.

Quando há centros de saúde na periferia das grandes cidades onde a falta de médicos de família atinge os 50 mil a 100 mil utentes, é impossível pensar que não vão desaguar nas urgências milhares de utentes que, em situações normais, nunca deixariam a rede de cuidados primários. Sabendo-se que, mesmo em horário alargado, a maior parte dos centros de saúde não dispõe de exames complementares de diagnóstico, mesmo o horário alargado não representará muito mais do que um paliativo.

O pico da gripe nem sequer chegou. No sistema de saúde, ficamos com a sensação de que três anos de troika acabaram como na história do cavalo do inglês. Agora que o sistema parecia já habituado a funcionar com um nível incrivelmente reduzido de recursos, vemo-lo a colapsar à beira das eleições, com estrondo e debaixo dos holofotes. Agora que Paulo Macedo quase nos tinha levado a acreditar no milagre das omeletas sem ovos.