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Graça Franco

Filhos do deus "dinheiro"

25 nov, 2014 • Graça Franco

Com o novo caso Sócrates vamos provavelmente continuar a saltitar entre casos, sem que a opinião pública seja chamada a reflectir profundamente sobre a génese comum a todos eles: a profundíssima crise de valores em que nos afundamos.

Sócrates ficará em prisão preventiva. Foi essa a decisão anunciada, por uma escrivã, ao fim de três dias de interrogatório, sem uma linha de explicação que fosse. Pelo contrário, em mais uma demonstração da incompetência comunicacional da justiça, ao mesmo tempo que se omitia tudo o que de facto interessa sobre as causas da decisão, ficámos a saber ao minuto, com pompa e circunstância, um chorrilho de inutilidades sobre o decorrer dos trabalhos (incluindo o tempo exacto das respectivas pausas).

Sem novos dados, e confiando no bom senso e justeza da avaliação do juiz Carlos Alexandre, podemos especular apenas sobre o facto de se temer correr o sério risco de perturbação do inquérito ainda em curso. Não parece crível nem o risco de fuga, nem a continuação da actividade criminosa. Como entre os crimes evocados avulta o da “corrupção” (presumivelmente ocorrida durante o exercício de vários cargos governativos) fica em aberto que a lista de prisões não se esgote em Sócrates e nos três restantes arguidos. Preparemo-nos.

A confirmar-se a acusação (que ainda falta), entraremos depois num período que ameaça ser longo até que o processo se extinga e transite em julgado. Pela frente teremos um mínimo de 18 meses e um máximo de quatro anos em que corremos o risco de andar permanentemente distraídos entre casos (os casos conexos do Monte Branco e Furacão, BES, PT, Tecnoforma, vistos “gold” e Sócrates, para falar apenas dos pendentes). O clima que daí resultar aprofundará a desilusão e descrença e funcionará como uma espécie de anestesia reforçando a anomia social. Fica aberto o campo à proliferação dos populismos.

Não creio que o regime fique em causa (antes pelo contrário!). Foi, aliás, esse infundado receio que serviu de argumento para justificar o epiteto de “abafador” que durante décadas perseguiu o Ministério Público. A corrupção não é um fenómeno novo. Não precisamos sequer de lembrar por que é que as várias tentativas de legislar sobre o enriquecimento ilícito foram durante décadas condenadas ao fracasso.

De cada vez que se quis combater o fenómeno, surgia a força de bloqueio do centrão dos interesses (que na semana passada emergiu na inqualificável tentativa de reposição das subvenções vitalícias). Sempre agitando o argumento falacioso de que “sendo ilícito” o enriquecimento suspeito já podia afinal ser combatido. Podia. Mas, na realidade, não foi.

Com o novo caso Sócrates vamos provavelmente continuar a saltitar entre casos, sem que a opinião pública seja chamada a reflectir profundamente sobre a génese comum a todos eles: a profundíssima crise de valores em que nos afundamos. Uma crise de que somos pessoal e simultaneamente todos responsáveis como cúmplices e/ou culpados.

Hoje mesmo, em Estrasburgo, o Papa falou de uma Europa emersa numa crise profunda. Vale a pena reflectir sobre a bondade e importância das respectivas palavras. Francisco falou como chefe de Estado e simultaneamente como o mais carismático e respeitado dos “políticos” e líderes espirituais e pastorais do nosso tempo. Líder pela palavra e pelo exemplo.

Em Junho, Francisco já alertava para os riscos do crescente culto ao “deus dinheiro”. É esse culto que conta com a cumplicidade activa de toda a sociedade e cria o terreno fértil ao crescente da corrupção. Criámos uma cultura que diviniza o “ter” e desvaloriza o Ser. Uma cultura que pactua, tolera, desvaloriza e de certa forma premeia esta busca incessante de dinheiro sinónimo único de todos os sucessos.

Não é por acaso que gostamos de pensar que esse é um fenómeno típico dos países em vias de desenvolvimento e não hesitamos em associá-lo às oligarquias africanas ou latino-americanas. Fingimos desconhecer que em plena Europa, primeiro na Itália, depois na Ucrânia, recentemente na França e agora infelizmente também em Portugal, vemos ex-primeiros ministros detidos, suspeitos ou acusados de fuga ao fisco, branqueamento de capitais, tráfico de influência e/ou corrupção.

Não é um problema que afecte os políticos e a política, as empresas e os banqueiros. Afecta todos nós. E devíamos pensar em que medida a cumplicidade social justifica que, mesmo quando sobre eles já pendiam inúmeras e fundadas suspeitas, muitos dos políticos visados tenham acabado reeleitos. A terrível desculpa do “ele rouba mas faz!” não é exclusivo de uns casos isolados em autarquias que nos envergonham.

Os média surgem aqui muitas vezes como os bons da fita que nunca desarmaram na denúncia. Ainda bem que não abdicamos desse poder de livre e apertado escrutínio. Mas também nós temos culpas no cartório na leviandade como nos precipitamos a julgar na praça pública ou ao tratar por igual o que tantas vezes pode e deve ser tratado de forma diferente, oscilando entre a sanha justicialista contra tudo e contra todos (como na história do lobo) e a púdica recusa do julgamento do carácter de quem se candidata à governação. É importante afirmar que para além dos programas partidários e das competências de gestão também o carácter dos políticos/empresários ou banqueiros pode e deve ser abertamente escrutinado. A banalização do mal só serve o mal.