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Pedro Leal

Destino inaceitável

02 jul, 2014 • Pedro Leal

O país não merece o que ciclicamente lhe é traçado. Acabados de sair do programa da troika, parece que já regressamos à velha confusão da trica política que cansa e afasta as pessoas da participação cívica.

São cinco olhares sobre um país que sentiu de modo violento o Programa de Assistência Financeira. No dia da discussão do Estado da Nação no Parlamento, a Renascença olha para “Os Anos da Troika”.

Nas várias reportagens multimédia, publicadas entre 3 de Abril e 19 de Junho, procurou-se perceber o sentimento das pessoas.

Quem é testemunha de um problema não entende uma percentagem: “Para quem está desempregado, a taxa de desemprego não é de 16%, é de 100%”, diz-se, a certa altura, num dos trabalhos.

Do conjunto de reportagens ficam algumas notas.

A primeira é uma constatação: para quem está no lado errado da história, o sofrimento é profundo, sufocador e, em alguns casos, próximo do desespero.

A segunda é uma surpresa: longe dos protestos de rua, onde pensávamos encontrar agressividade, encontrámos uma desilusão tão profunda que deixa para segundo plano o protesto focalizado na figura “A” ou “B”.

A terceira deriva da segunda. No discurso da crise, os políticos são irrelevantes. Poucas vezes foram citados. São votados à indiferença. Apesar das consequências dos seus actos, no dia-a-dia de quem sente a crise, os políticos pouco contam.  

A quarta é mais uma conclusão. Apesar de atraiçoados por um futuro que não escolheram, como as reportagens ajudam a perceber, as pessoas não desistiram: cada dia é um dia de luta, quer seja nos baldes de lixo (pois foi a esta situação que alguns foram obrigados a chegar), quer seja na emigração ou em projectos de empreendedorismo. 

Este é um “destino” inaceitável”. O país não merece o que ciclicamente lhe está a ser traçado. E, acabados de sair da fase mais dura do Programa de Assistência Financeira, parece que já regressamos à velha confusão da trica política que cansa e afasta as pessoas da participação cívica.

Façamos um curto exercício de memória com base no clima político do último mês e meio.

Parece uma novela de cordel: resvala entre a falsa euforia de uma libertação e a falsa crise de retórica entre apoiantes e críticos do Tribunal Constitucional.

O principal partido da oposição fragiliza-se em lutas internas, entre ataques que mais parecem próprios de um qualquer recreio de uma escola, com empurrões incluídos.

De permeio, anuncia-se o fecho de umas escolas, ao mesmo tempo que se espera as conclusões de um estudo encomendado sobre políticas de natalidade (não devia estar tudo ligado? Um não devia ser consequência do outro?). Por fim, fica a ameaça de mais um aumento de impostos.

Compreendo agora um pouco mais os que defendiam que seria melhor a troika por cá continuar: este tipo de comportamentos não faz sentido.

Nas famílias, quando morre alguém próximo, misturam-se, por vezes, sentimentos de tempo perdido, sentimentos que tornam ridículos comportamentos anteriores: as palavras que não se disseram, o abraço que se evitou, as zangas sem motivo que se desfazem perante o corpo do familiar.

A morte tem a capacidade de transformar alguns comportamentos de orgulho majestático em sinais irrelevantes da natureza humana.

O que é que isto tem a ver com o país? Tudo. O país está mal e os políticos precisam de respeitar mais as pessoas. A classe política tem de perceber como são ridículos alguns dos seus comportamentos, ritos e mensagens. Está desfasada. Vive num mundo à parte que não adere à realidade.

Com o tempo quente, surgem as universidades de Verão e similares, que os partidos, ano após ano, organizam para formarem os seus jovens. Este ano talvez fosse bom mudarem de corpo docente: em vez das estafadas figuras históricas, talvez fosse bom convidarem gente comum para ouvirem histórias reais de quem sabe de trás para a frente o valor de salários de miséria, o custo familiar do desemprego, a impossibilidade de ter filhos, a necessidade de emigrar, o que é ter o futuro interrompido. Talvez assim surgisse alguma mudança.

Uma última nota sobre a grande reportagem em cinco tempos “Os Anos da Troika”: apesar da adversidade, testemunha-se esperança. Pequena, mas visível. Que os partidos, principalmente os que têm assento parlamentar, não a comecem já a matar.