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Eunice Lourenço

Cruzar o olhar com Cristo

14 mar, 2014 • Eunice Lourenço

D. José Policarpo não era de trato fácil, nem de empatia imediata. Conheci o distante príncipe da Igreja e o intelectual sem paciência. Felizmente, também conheci o bispo entusiasmado e entusiasmante e o pastor próximo, a cuidar de cada ovelha numa relação pessoal.

Foi em Paris, na Jornada Mundial da Juventude de 1997, que lhe ouvi a frase pela primeira vez. “Não tenham medo de deixar o vosso olhar cruzar-se com o de Cristo”. Ainda bispo auxiliar de Lisboa, D. José Policarpo dava uma catequese a centenas de jovens de língua portuguesa sentados no chão de uma igreja parisiense e deixava o apelo que haveria de repetir em encontros semelhantes ao longo dos anos.

Cruzar o olhar, deixar que o olhar do outro nos toque, ficar preso nesse olhar – assim nascem paixões, assim se vivem amores eternos. Assim se pode viver o amor de Deus, o amor com Deus, o amor em Deus. D. José Policarpo sabia-o bem. Costumava dizer que, no momento em que deixou o seu olhar cruzar com Cristo, ficou tramado, apanhado para a vida toda. Por isso, insistia com os jovens. “Deixem o vosso olhar cruzar-se com o de Cristo.”

D. José Policarpo não era de trato fácil, nem de empatia imediata. Conheci o distante príncipe da Igreja e o intelectual sem paciência para assuntos que considerava menores. Felizmente, também conheci o bispo entusiasmado e entusiasmante perante uma plateia de jovens e o pastor próximo, a cuidar de cada ovelha numa relação pessoal. E aí quase que se transfigurava, perdia a sisudez, desanuviava-se. Interpelava e cativava, não para ele, mas para Cristo.

Era quando falava de Cristo, da relação pessoal com Deus, quando punha de parte os discursos escritos e deixava também o seu olhar cruzar-se com o das suas ovelhas que melhor chegava ao rebanho que lhe estava confiado. Que até podia orgulhar-se do brilhantismo do intelectual, mas preferia a proximidade do pastor, do bispo que guia e cuida daquela porção do Povo de Deus que lhe está entregue. 

“Deixem o vosso olhar cruzar-se com o de Cristo”. Demorei, mas acabei por deixar. E com D. José vivi a experiência da presença actuante do Espírito Santo no meu bispo e na Igreja. Com ele, aprendi a obediência que liberta. Com ele, através dele e, até, apesar dele entreguei o que sou e o que tenho ao serviço do Reino de Deus na Igreja de Lisboa. Agora que D. José está a cruzar o olhar com Cristo face a face, rezo como Job: “O Senhor o deu, o Senhor o levou. Bendito seja o nome do Senhor.”