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José Bastos

Ucrânia 3.0 - Obama vs Putin

13 mar, 2014

A única solução com aparência de estabilidade, salvando a face de todos, é a democrática. Putin aceita as eleições? Ou o referendo deste domingo na Crimeia altera os dados?

Aqui chegados é do regresso da Guerra Fria de que se fala quando falamos da tensão na Ucrânia? Não.

Não no sentido do confronto ideológico estruturante da ordem internacional assente no equilíbrio militar convencional e nuclear.  É antes um confronto limitado decorrendo da tentativa russa de recuperar parte do espaço pós-soviético pré-1991 e da tentativa ocidental de o impedir.

O Ocidente acusa a Rússia de violar a legalidade internacional com a invasão silenciosa da Crimeia. A Rússia queixa-se da Maidán de Kiev (e de quem a apoiou) ter violado a legalidade constitucional da Ucrânia.

Esta guerra de propaganda está a ser ganha pelo Ocidente no Ocidente e Rússia na Rússia (e na "parte russa" da Ucrânia). No confronto Ocidente vs. Rússia, Obama vs. Putin é a propaganda o único factor de equilíbrio? Não parece.

Vantagens e desvantagens nas próximas opções da Casa Branca e Kremlin? É o exercício listado abaixo:

Trunfos de Obama
Boicotar a próxima cimeira do G8 em Sochi? Não passa de um gesto diplomático. Putin também não assistiu à reunião de 2012 em Washington.

Tentar expulsar a Rússia do G8? Poderá encontrar resistências de outros países. A China está fora do G8 e a economia não se ressente.

Boicote à economia russa? Japão, Brasil, China, India, África do Sul, parceiros de Moscovo nos BRICS, não concordam. Aliados europeus com interesses e consumidores de gás russo, aspas aspas. Rússia é um pilar da economia mundial.

Pressão económica no longo prazo? Diminuir a dependência europeia do gás e petróleo russo e esperar da classe média russa o resto (derrube de Putin nas urnas)? Aos russos não faltam iPhones nas mãos, mas só num improvável descalabro do rublo se teria Caracas replicada em Moscovo.

Recuar na Síria por troca de cedências na Ucrânia? Arábia Saudita e Irão, actores chave no cenário, têm agenda própria, desligada de Moscovo.

Expulsar a Rússia da OMC ou OSCE? Impossível obter unanimidade dos outros membros.

Proibir a entrada da elite do Kremlin nos Estados Unidos e Europa? Gesto para causar danos à reputação de Putin, mas de escassa eficácia.

Afastar possibilidade da adesão da Ucrânia à Nato, convencendo Bruxelas à integração de Kiev na União Europeia? Possível, com acordo de Putin. Washington precisa de Moscovo para conter o programa nuclear do Irão ou retirar armas químicas da Síria.

Recuar no apoio à Ucrânia de Leste? Afinal, o que verdadeiramente poderia interessar ao Pentágono era fragilizar a presença russa na Crimeia, "expulsando-a" do Mediterrâneo? Putin não enviou tropas para Donetsk, porque o interesse NATO está na Crimeia. Improvável Washington apoiar a Ucrânia que menos interessa: a pró-russa.

Resposta militar como medida de último recurso? As sanções não assustam os russos. Daí reforçar efectivos na Lituânia, Letónia, Estónia e Polónia? Colocar mais navios de guerra no Báltico? Mais aviões de combate no Báltico? Talvez, mas a Rússia é potência nuclear e segunda maior potência militar do planeta. A opção militar... não (parece) opção. Até os "neo-cons" estão conscientes da impossibilidade do uso da força. A excepção parece ser Sarah Palin: "A única coisa que pode deter um malvado com uma arma nuclear é um cavalheiro com uma arma nuclear", afirmou a candidata a vice-presidente em 2008, no "ticket" eleitoral de John McCain. Palin acusa Obama de ameaçar Putin apenas "com um telefone e uma caneta".

Trunfos de Putin
Declarar a Ucrânia como área livre da Nato? A linha vermelha de Moscovo? Inaceitável em Washington.

Fazer a vida impossível ao novo governo de Kiev reclamando, no imediato, a factura de gás – dois mil milhões euros - e 16 mil milhões de dívida a vencer em 2015? Contornável pelo apoio ocidental, do FMI e da UE, mesmo que a ajuda acabe nos cofres do Kremlin.

Inundar os mercados com títulos do tesouro norte-americanos?. Improvável pelo prejuízo causado às – já de si - debilitadas contas públicas russas.

Decidir uma "missão humanitária" enviando o exército para proteger cidadãos russos em perigo? Putin, ao contrário de Obama, tem apoio popular para uso da força. Por mais "maquilhada" que fosse tratar-se-ia de uma invasão, só menos silenciosa que a actual na Crimeia.

Encerrar a rota Norte (a sul é a partir do Paquistão) que permite à NATO usar o território russo e aliados da Ásia Central no transporte de equipamento militar para o Afeganistão? Sem esta rota será complexo a Washington completar a retirada de tropas em Dezembro. É do interesse russo a saída dos Estados Unidos de Cabul.

Descongelar o envio de mísseis S-300 a Teerão e reforçar a ajuda a Damasco? Não é do interesse de Hassan Rouhani no seu melhor momento de sempre com Obama.

Conquistar e tornar visível maior apoio de Pequim? A nova estratégia da Nato – desenhada em 2010 em  Lisboa – reduz o espaço europeu da Rússia e provoca o choque com a China na expansão das fronteiras orientais. A China não esconde o desconforto pela rivalidade russa na Ásia Central. Improvável que Pequim alinhe na pretensão de Moscovo.

Reforçar a sua frota naval na Crimeia? O Pentágono pode decidir o reforço da 5ª frota naval no Bahrein.

Anexar a Crimeia e controlar o leste da Ucrânia? Putin afastou a anexação da Crimeia, mais ainda a ocupação de parte da Ucrânia, em favor de maior autonomia ou de estatuto semi-independente. É facto que o referendo de domingo torna o cenário mais complexo, mas uma coisa é a Crimeia pedir a integração na Federação russa, outra que Moscovo aceite "tout court".

Usar a Crimeia (pós-referendo do próximo domingo) como factor de desestabilização da Ucrânia, tanto no "modelo Kosovo" de independência formal como no "modelo Taiwan"? Provável, mas de elevado custo diplomático no médio, longo prazo.
 
Sem opções óbvias, como suavizar a tensão?
A pronta resposta do Kremlin na Crimeia – o referendo "pronto-a-vestir" do próximo domingo – é o indício de Putin estar disposto a correr riscos para manter a Ucrânia ou, pelo menos, parte dela na órbita de Moscovo. A Ucrânia é decisiva para os interesses russos. O factor étnico continua a contar na globalização ou, justamente, por causa da globalização. A rapidez da resposta russa indica que o plano existia para ser aplicado se acontecesse o que aconteceu. Como suavizar então a tensão?

Henry Kissinger, surpreendentemente para alguns, publicou, dia 5, no "Washington Post", um artigo com pistas imperdíveis de saída da crise. O experiente diplomata, sempre realista face a conceitos de aplicação da força e exercício do poder, não sugere soluções unilaterais que possam agravar o conflito. Exemplos: "A Ucrânia é um duelo entre  o Ocidente e o Leste. Se quiser ter futuro não pode transformar-se no posto avançado de um lado contra o outro. Deve ser a ponte de ambos".

"A Rússia deve perceber que tentar converter pela força a Ucrânia num estado-satélite a condenaria a outro ciclo de ataques e contra-ataques com Washington. O Ocidente deve compreender que, para a Rússia, a Ucrânia nunca será um país estrangeiro", sustenta o ex-secretário de estado norte-americano. O nacionalismo imperial de Putin não decorre da formação KGB, mas de um elemento substantivo da cultura política russa.

Kissinger não defende a integração da Ucrânia na Nato, nem acredita na "satanização" de Putin. A pressão, explica, está do lado das elites ucranianas, incapazes de consensos como se demonstra nos anos de independência. Por isso, o Ocidente devia "fomentar a reconciliação, não a dominação de uma facção sobre outra". Os problemas da Ucrânia assentam na falta de acordos básicos entre as duas partes do país.

A única solução com aparência de estabilidade, salvando a face de todos, é a democrática. Eleições gerais em todo o território ucraniano (acordadas, a 21 de Fevereiro, entre os dois lados na presença dos ministros dos estrangeiros alemão, francês e polaco – e um representante russo). Putin aceita estas eleições a 25 de Maio? Ou o referendo deste domingo na Crimeia altera os dados?

Responde Henry Kissinger no artigo do Post: “Foreign policy is the art of establishing priorities”. Antes ainda das piores opções. Tentando colocar todos a ganhar ou, pelo menos, a não perder demasiado.