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JOÃO FERREIRA DE ALMEIDA

Factura da sorte "não faz sentido e é ofensiva para as pessoas”

17 abr, 2014 • Rosário Silva

A sorte é lançada, pela primeira vez, esta quinta-feira. O sorteio da chamada “factura da sorte” vai prender muitos portugueses à televisão, mas há quem não veja com bons olhos esta medida do Governo. A Renascença ouviu a opinião do sociólogo, João Ferreira de Almeida, Professor Catedrático pelo ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa.

O sorteio de automóveis ligeiros entre os contribuintes que pediram factura com inscrição do número de identificação fiscal realiza-se, pela primeira vez, esta quinta-feira, sendo repetido no dia 24. A partir de Maio, o concurso realiza-se todas as semanas.

Como encara a “fatura da sorte”?
Há uma primeira questão que tem a ver com aquilo que, suponho que todos partilhamos, é a necessidade de combater a fraude fiscal, a necessidade de obter os rendimentos legítimos que podem vir da fiscalidade e, Portugal tem tomado iniciativas a esse respeito que até tem dado resultado. A chamada “economia paralela” tem há muito tempo uma dimensão muito significativa, por definição é difícil quantificá-la com rigor, mas pelo menos todas as avaliações vão para a ideia de atingir os 25% da economia “subterrânea”, também assim chamada. É o que acontece em Portugal.

Esta tendência para os jogos, que já existe em Portugal, não é mais acentuada pelas pessoas nesta altura de crise?
As pessoas são atraídas pela sorte, mesmo quando sabem, calculem ou não, que a probabilidade de ganharem a lotaria ou o totoloto, é muito baixa. Por exemplo, a lotaria que é a típica e clássica forma de intervenção no jogo regulado pelo Estado, independentemente dessa probabilidade, porque é que não há-de acontecer a mim? E depois há outra coisa. Se todos os meus rendimentos baixam, se o futuro é negro, se eu estou em situação de grande dificuldade, eu tendo a apostar na sorte. O que é que eu vou fazer? Outra hipótese é ir roubar. Ora bem, tem-se verificado que há um crescimento de todo o tipo de jogo na sociedade portuguesa…

E, certamente, o Governo também não ficou alheio a esse aspecto?
Eu suponho que o Governo, os responsáveis, terão apostado nisso. Se calhar, do ponto de vista prático, apostaram bem porque ao que parece há um grande sucesso.

Mas, faz sentido esta medida?
Eu acho que a medida não faz sentido e acho que até é ofensiva para as pessoas. Então “Audis” para quem está em situação de dificuldade? Pode acontecer que um Audi vá parar a um milionário, mas se for é mais do mesmo. Suponha que sai a alguém da chamada classe média/baixa. O que é que eu faço com um Audi? Eu não tenho dinheiro para o sustentar. Então porquê isto? Aproveitando uma maré de descontentamento e dificuldade muito grave da situação dos portugueses, a meu ver, é ofensivo, inaceitável e não é necessário. Há outras formas que permitem que esse controlo se faça de uma forma efectiva e, independentemente do sucesso, imagino grande da medida, é natural que as pessoas correspondam, mas os resultados perversos e a visibilidade pública deste tipo de situações e de expediente não me parece que possa ser positiva.