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"O Estado por dentro". Um retrato com gente dentro no reino da burocracia

04 dez, 2017 - 10:05 • José Pedro Frazão

Tem rituais, papéis e pressões. Tem meios a menos e ética e brio profissionais para mostrar. O novo estudo da Fundação Francisco Manuel dos Santos troca as estatísticas pelo estudo etnográfico do quotidiano de três instituições públicas.

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Da Capa à Contracapa - O Estado por Dentro - 02/12/2017

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Desta vez os números ficam à porta. Chama-se "O Estado por Dentro - Uma Etnografia do Poder e da Administração Pública em Portugal” e é um estudo encomendado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS) para descrever o quotidiano de três instituições públicas, representativas de outras tantas funções do Estado.

Seis antropólogos e sociólogos mergulharam durante cinco a nove meses na realidade da Assembleia da República, da Agência Portuguesa do Ambiente e dos tribunais de Instância Central Criminal e Central de Família e Menores no Campus da Justiça em Lisboa.

O trabalho de campo passava por observar os passos de deputados, assessores, magistrados, oficiais de justiça e engenheiros do ambiente, tomando notas das tensões e dificuldades dos que nestas instituições desempenham funções na administração pública. Em mais de 300 páginas, os autores do estudo descrevem o funcionamento e as rotinas em três círculos de acção do Estado, do poder legislativo ao judicial, passando pela acção fiscalizadora, preventiva e executiva no sector ambiental.

Daniel Seabra Lopes, antropólogo e coordenador do estudo, admite que é inevitável que se gere alguma proximidade entre o investigador e quem colabora no estudo. “Pode ir fumar com o funcionário ou participar num jantar de Natal ou em algo que tenha a ver com rotina de descompressão dentro da instituição”, explica o investigador, que reconhece ainda que nem todos os funcionários dos departamentos públicos estudados quiseram participar no trabalho.

“Um trabalho destes não é fácil. Há sempre resistências. A principal é conseguir a autorização institucional. A partir desse momento, a presença das pessoas na instituição passa a ser mais aceite. Mas há sempre esta rotina de pedir autorização para observar, há que conquistar a confiança das pessoas”, complementa o antropólogo no programa “Da Capa à Contracapa” da Renascença, em parceria com a Fundação Francisco Manuel dos Santos. Para além de Daniel Seabra Lopes, o estudo tem a autoria de Catarina Frois, João Mineiro, Raquel Carvalheira, Ricardo Gomes Moreira e Sofia Bento.

Rituais, rotinas e burocracia

Os investigadores descrevem uma forte componente ritual nas instituições estudadas. No Parlamento, o exemplo são as votações e os debates em plenário. Nos tribunais, destaca-se toda a formalidade de uma sessão de julgamento. Em todas as instituições encontra-se o peso da burocracia e da importância da rotinização.

“Não pode haver um funcionamento institucional sem rotinização. Não creio que a desmaterialização seja afastamento de rotinas. É a criação de outro tipo de rotinas”, anota Seabra Lopes, que é também co-autor do capítulo sobre os tribunais estudados neste trabalho etnográfico. O estudo mostra como o papel subsiste nos tribunais, apesar da disponibilidade dos processos em versão digital. Muitos magistrados ainda usam muito o papel para percorrer o processo, uma vez que estão traquejados nesse tipo de leitura dos autos.

Na Agência Portuguesa do Ambiente, os investigadores concluem que o Departamento de Avaliação Ambiental “procura e é pressionado para encontrar estratégias que tornem o procedimento mais rígido, uniforme, harmonizado e mais objectivo. A rigidez procedimental e a racionalidade científica e técnica são as duas faces de uma mesma estratégia de objectificação de uma realidade que é complexa, diversificada e em processo de transformação”.

Os capítulos incidem ainda na importância das redes de trabalho com outras instituições, do sentido crítico dos funcionários públicos. Mas destes estudos, avisam os autores, não é possível concluir como é que o Estado se vai reinventando em Portugal. Isso exigiria mais trabalhos deste género.

No entanto, diz Daniel Seabra Lopes, os investigadores viram interesse na resposta dos funcionários que iam sendo sujeitos a observação.

“Há representações muito firmadas sobre o que são os trabalhadores do Estado. Daí o interesse das pessoas em que o trabalho avançasse porque poderia contornar um pouco essas representações”, explica o antropólogo, que coordenou este estudo.

Nos tribunais, a secretaria manda mais do que se julga

O estudo recolhe lamentos de magistrados que se queixam da falta de tempo para se dedicarem aos processos “com a atenção que sentem que lhes é devida”. Esta situação acontece por causa do “afluxo" de processos, dos prazos e objectivos para a sua resolução e por causa da falta de recursos humanos.

É aqui que entram em cena uma das peças centrais da máquina judicial. Os oficiais de justiça desempenham um papel fundamental na gestão dos "tempos da justiça", assegurando o cumprimento dos prazos de cada passo processual e muitas vezes acelerando como podem esse mesmo tempo, sempre dentro dos prazos legais, de forma a tornar mais célere a gestão de cada processo.

"Tudo aquilo que é feito ao nível da secretaria é um trabalho de facto invisível, mas muito importante, de gestão dos prazos dos processos. Tudo na justiça tem a ver com prazos. Quando se envia um ofício e espera-se uma resposta de uma instituição de fora do tribunal ou de um arguido ou de uma testemunha, tem que se dar um prazo para essa resposta chegar. Quem gere e faz o controlo desses prazos são os escrivães. Daí que nós os chamemos os guardiões do tempo”, explica Daniel Seabra Lopes.

A questão da falta de meios é colocada diplomaticamente no estudo. “Detectámos nos tribunais que poderia haver, num caso ou outro, uma falta de recursos sobretudo ao nível administrativo. Se considerarmos que por cada juiz deve haver um escrivão auxiliar ou de sala e um escrivão adjunto ou de secretaria, este rácio nem sempre era cumprido em todos os tribunais”, complementa o antropólogo.

Tensões com peritos

Existem frequentes tensões entre o tribunal e outras instituições que cooperam na justiça. Os investigadores atestam que muitas vezes o atraso nos processos decorre de atrasos na notificação de arguidos, conclusão de relatórios periciais ou de diligências com instituições internacionais. Os tribunais, embora sendo soberanos e centrais nos processos, têm "influência reduzida" disciplinar e hierárquica sobre as instituições cuja intervenção é essencial num processo.

"O quarto poder experimenta, neste sentido, alguma dificuldade em impor as suas ordens, deparando-se amiúde com a indisponibilidade, a indiferença e mesmo a ironia de outros membros da constelação judiciária”, lê-se no capítulo dedicado aos tribunais.

Nos Tribunais de Família e Menores, a opção dos juízes por deixar a institucionalização das crianças como último recurso pode levar a choques com a visão de técnicos de instituições como a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, que está exactamente na linha do acolhimento. A relação entre tribunais e peritos em medicina tem também problemas. Certas perícias demoram a ser enviadas e por vezes não apresentam resultados que permitam uma decisão fácil ao juiz, por exemplo sobre inimputabilidade de um arguido.

Há desilusões no Parlamento

O Parlamento não é uma instituição pública comparável a outras essencialmente técnicas. Por isso, o estudo do funcionamento parlamentar entra por dimensões mais alargadas que ajudam a formar uma ideia sobre o estado da democracia representativa em Portugal.

“Desde o início que sabíamos que íamos abordar um pequeno universo de instituições de Estado. Queríamos começar por instituições mais representativas. O Parlamento era um bom ponto de partida, por ser onde está o poder de fazer leis, mas também pelo poder de representar os cidadãos na discussão política”, explica o antropólogo Daniel Seabra Lopes.

Os investigadores observam que muitos deputados recusam assumir o seu trabalho como profissão, embora a vivam como tal. Chegam ao Parlamento por duas vias essenciais: passagem directa da Universidade para o Parlamento ou trajectória partidária prévia. Há deputados mais desiludidos que se confessam como "peixes fora de água", com dificuldade de adaptação ao modo de funcionamento do Parlamento ou do seu grupo parlamentar. A tomada de decisão política é centralizada na direcção da bancada, o que leva por vezes a conflitos e dissensões nas bancadas. Mas há também as "enguias de água doce" que se adaptam rapidamente, como descrevem os autores.

É nos deputados que o estudo se centra mais. Ele há os que consideram que o seu salário é baixo comparando com o privado. Mas outros há que entendem que devem doar parte do ordenado ao partido.

Os autores sugerem que os deputados encenam muito uma representação para o público imaginário que acompanha os debates pelos media. Há muito "palco" no plenário e muitos "bastidores" na estrutura de apoio aos deputados, em especial os assessores parlamentares. Nas comissões e em grupos de trabalho, os deputados são muito mais informais e profícuos na colaboração com outras forças políticas.

Os investigadores chegaram a acompanhar alguns legisladores a visitas de “contacto com o eleitorado”. Os deputados investem em interacção com os círculos por onde são eleitos com recurso a visitas ao terreno e uso de redes sociais.

Quando a formalidade garante a qualidade

No Bairro do Zambujal fica a sede de uma agência governamental que emprega mais de 700 funcionários. A Agência Portuguesa do Ambiente foi agregando competências de diversas entidades ligadas ao sector e hoje é o braço operacional da tutela em matéria de políticas públicas de ambiente.

Os investigadores optaram pelo delicado Departamento de Avaliação Ambiental. A burocracia que ali garante o rigor e a objectividade pode ser também perversa noutros pontos do processo.

“Entre os técnicos existe a percepção de que o envolvimento do público é cada vez mais burocratizado, dependente do uso de tecnologias não acessíveis a todos, como os computadores e a internet, de prazos estritos e de limites orçamentais para a condução de audiências públicas e sessões de esclarecimento. Neste ponto, legislação e convenções associadas parecem mais ser um aparato discursivo que publicita a democratização das instituições do que um verdadeiro instrumento de intervenção nas dinâmicas e lógicas do Estado”, escrevem os investigadores que assinam este capítulo.

Em toda a observação sobressaem sintomas de um imperativo ético de serviço público que se sobrepõe a pressões num departamento que lida com grandes interesses políticos, económicos e sociais.

“Os técnicos sabem que a dimensão formal é importante no seu trabalho, mas gostariam que a tomada de decisão se baseasse sobretudo em considerações técnicas e científicas. Para muitos deles, a separação entre as esferas de decisão política e científica é o que permite que este trabalho seja desempenhado com qualidade e neutralidade”, pode ler-se no estudo.

Ética para prevenir ilegalidades

Existe uma caixa de ferramentas preventivas, baseadas no interesse público e na ética profissional, usadas para impedir a propagação de problemas que podem ser sérios a nível legal.

"'Amigos, amigos, negócios à parte', disse-nos um dos técnicos para explicar que tinha uma boa relação com alguns promotores com quem trabalha há muitos anos mas que isso não queria dizer que fazia cedências nas medidas a serem implementadas. Alguns comentaram ainda que não estavam dispostos a fazer 'coisas fora da legalidade e se quiserem que as faça têm de as explicitar por escrito'. Esta citação é demonstrativa do peso e da pressão que são colocados neste tipo de trabalho e da necessidade que os técnicos têm de se defender de acusações futuras que resultem do não cumprimento da lei”, acrescentam os autores.

Os investigadores asseguram que os técnicos e as suas chefias patenteiam uma “dimensão moral que os leva a perseguir determinados objectivos e a considerarem-se responsáveis pela salvaguarda dos valores ambientais nacionais, tais guardiões do ambiente”. Entre as frases escutadas pelos técnicos estão expressões como “eu quero dormir bem à noite” ou “eu quero ter a certeza que ponderei todas as possibilidades”.

Há ainda uma lógica negocial da APA dentro da própria administração pública. “Outro ministério queria impor a duplicação dos limiares para submissão dos projectos a Avaliação de Impacte Ambiental, medida que possibilitaria que muitos projectos pudessem evitar este procedimento. No entanto, segundo o que revelaram, esta proposta surgiu sem qualquer fundamentação técnica, ou seja, sem a demonstração de que não existiriam impactes abaixo desses limiares propostos. A argumentação científica ou técnica é central para que os técnicos e as chefias defendam os interesses da instituição que representam e para que possam contestar medidas impostas exteriormente”, relatam os investigadores que ali fizeram trabalho de campo.

Ambiente de pensamento crítico

É aqui, na APA, que os autores encontram mais contraste com “estereótipos que existem sobre os funcionários públicos como trabalhadores acomodados a uma situação profissional, sem responsabilidade ou consciência sobre a importância do seu trabalho”.

O estudo dá conta de uma cultura de “pensamento crítico” em relação aos relatórios de segurança, com discussão interna permanente ao longo do processo administrativo, em ambiente de informalidade e com à-vontade. Os investigadores relatam que os técnicos beneficiam de uma “autonomia relativa” no processo de avaliação mas cabe às chefias a última palavra.

“Existe espaço para encontrar consensos, mostrar discordância e debater a decisão porque, para tomá-la as chefias precisam, entre outros elementos, das informações e dos conhecimentos sobre cada projecto, o que está nas mãos dos técnicos”, resumem os autores, que atestam ainda uma posição fortemente crítica de muitos funcionários da Agência Portuguesa do Ambiente sobre um alegado desinvestimento dos governos na administração pública portuguesa e a “incapacidade de impor o interesse comum sobre interesses económicos e políticos”.

Na Agência Portuguesa do Ambiente, dizem os investigadores, há preocupação com a “ escassez de recursos humanos e a ausência de uma política para garantir a transferência de conhecimentos dos mais velhos para os mais novos”.

Os problemas da avaliação

No quadro geral, os funcionários dos serviços aqui retratados consideram que o que fazem está para além do que é considerado para efeitos de avaliação de desempenho.

“Esta discussão da reforma do Estado tem levado a muitos cortes e processos de avaliação e tentativas de melhoramento. O que as pessoas sentem também é uma pressão sobre elas para produzirem demasiados resultados. E há um desfasamento entre o que elas consideram relevante no trabalho que fazem e com o qual se identificam e os indicadores que também têm que produzir e que fazem parte deste processo de avaliação do Estado”, observa Daniel Seabra Lopes, que admite que o trabalho de campo efectuado neste estudo consegue registar aspectos que escapam à avaliação formal em vigor no Estado.

“A maneira como o trabalho está a ser avaliado não dá conta da totalidade da importância do trabalho. Há outro tipo de questões que também podem ser levadas em conta. Normalmente quando são feitas as inspecções, há uma queixa recorrente e até certo ponto compreensível: a inspecção é um ritual onde se recolhe informação, alguma já coligida, fazem-se algumas observações e depois vão-se embora”, conclui Seabra Lopes.

Comentários
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  • Renato Bastos
    06 dez, 2017 Ponta Delgada 12:07
    O autor não entrou para o estudo que fez na Autoridade Tributária e Aduaneira porque se entrasse era sempre acompanhado por um agente do estado estilo Coreia do Norte. O mundo das direções de finanças a nível local e central está fechado ninguém diz nada ninguém sabe de nada, pois, todos temem represálias todas as pessoas ao abrigo da confidencialidade que sempre é invocada fecha-se em copas, é um mundo de padrinhos e enteado. Explico: Um diretor de finanças de carreira tem ao seu redor e cria amigos em lugares chaves da SEAF e DSGRH da ATA, para que os funcionários fiquem subjugados ao seu poder discricionário e autoritário. Se um funcionário fizer queixa ao órgão acima do diretor a queixa é arquivada no caixote do lixo e o diretor de serviço envia copia de queixa ao diretor que foi alvo da queixa e depois é chamado á atenção e ameaçado pelo aquele que fez queixa. Isto é o dia a dia do funcionamento do Reino das Finanças em Portugal.
  • Renato Bastos
    04 dez, 2017 Ponta Delgada 11:24
    Enviei comentario e vcs não publicam? Censura não é
  • F Soares
    04 dez, 2017 vespera5@clix.pt 11:00
    APA - demasiado poder de baixo até ao topo e vice-versa. Onde se requer bom senso, impõe-se o poder tipo "eu é que sei e decido". Se a APA existisse no tempo de D Afono Henriques, ainda andávamos a discutir se queríamos ser país ou não
  • JULIO.
    04 dez, 2017 vila verde 10:58
    Não digam mal do estado , é o maior criminoso das nossas vidas e não hà vontade de mudar
  • Renato Bastos
    04 dez, 2017 Ponta Delgada 10:51
    Se formos para a Autoridade Tributária e Aduaneira e na area tributária então é o descalabro, aqui rege-se como se fosse um regime do século XIII, em que a SEAF é o Reino onde o secretario soa Assuntos Fiscais é o Rei, A diretora geral de finanças é a capitã donatária e os diretores de finanças os senhores feudais que abusam , perseguem, violam as leis, fazem novas leis, e ao redor deles os bobos da corte, os lambe botas que são os chefes de divisão, e os chefes de finanças, que também teem os seus lambe botas que são os adjuntos de chefe de finanças. Tudo par quê? Para cobrarem indevidamente impostos pequenos de cobranças coercivas pois quando os contribuintes reclamam e como os valores são pequenos e o custo dos advogados elevados então o contribuinte opta que a Administração Fiscal(Donataria Geral) cobra o valor pequeno, e deste modo os funcionários recebem ao fim de três em três parte do despojo roubado á população, chama-se FET(Fundo de Estabilização Tributária) esta percentagem roubada e paga aos funcionários da Donataria Real.

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