22 set, 2017 - 20:20 • Sandra Afonso
Há sectores onde o emprego vai desaparecer massivamente nos próximos anos. O alerta é do economista espanhol Raymond Torres, conselheiro da Organização Internacional do Trabalho (OIT), em entrevista à Renascença.
Segundo este especialista, a economia digital e a robotização estão a transformar o trabalho e as relações laborais. Já existem sectores onde só predominam empregos altamente especializados.
Num cenário de mudança acelerada e de envelhecimento da população, Raymond Torres defende a criação de um imposto único sobre todo o tipo de rendimentos para financiar as pensões futuras.
O trabalho e o custo do trabalho têm sido usados como variáveis de ajustamento pela Comissão Europeia. Concorda?
Em certa medida não se teve em conta a centralidade do trabalho e do emprego e as políticas que se adoptaram pela União Europeia e a iniciativa da UE durante uns anos. Creio que isto mudou, mas é verdade que foi uma variável de ajuste durante algum tempo. Obviamente, teve um impacto negativo, subiu a taxa de desemprego para níveis desconhecidos para este país e também noutros países. Além disso, reduziu a proteção dos trabalhadores, sem ter um impacto claro na reanimação da economia. Creio que, de certa forma, o problema foi que a verdadeira reforma que fazia falta não era laboral era sobre a origem da crise e essa tardou em ser implementada.
A OCDE, durante a crise, defendeu a flexibilização do trabalho em Portugal. Ainda hoje o FMI continua a defender a flexibilização. Apoia esta política?
Mais do que a flexibilização, o erro foi pensar que com a flexibilização e a reforma laboral a crise seria resolvida. Porquê? Porque não havia financiamento para as empresas, sobretudo para as pequenas, havia uma crise de crédito. E segundo, porque ao flexibilizar o trabalho reduziram a procura do lado dos trabalhadores e da sociedade, o que afectou o crescimento e agravou a crise de crédito. Foi isso que provocou um aumento tão significativo do desemprego e a estagnação da economia – o diagnóstico errado da origem da crise – esse foi o problema.
O forte agravamento do desemprego em Portugal chegou a classes até aqui protegidas, como os que têm mais estudos, apanhou famílias inteiras e fez disparar a emigração. O emprego diminuiu e perdeu qualidade, o trabalho é agora mais barato e mais precário. Esta é uma realidade passageira ou uma tendência?
Esperamos que seja uma realidade passageira. É verdade que cresceu a precariedade, o trabalho temporário, a curto prazo, com salários baixos. Por exemplo, há uma percentagem muito grande de jovens universitários sem trabalho estável, bem pago ou adequado às qualificações que apresentam. Penso que parte deste problema não será estrutural, mas apenas passageiro.
Também é verdade que o Governo aumentou o salário mínimo, em proporções importantes, e que isso não reduziu o emprego, pelo contrário. O que indica que é possível fazer algo para resolver parte do problema e torna-lo passageiro. Mas a crise financeira está a passar, estamos já a entrar noutra situação, a transformação do trabalho, que tem pouco a ver com a crise financeira. É uma transformação tecnológica a fragmentação da produção, plataformas digitais que se estendem a todo o trabalho produtivo e que exigem um trabalho com poucas ligações ao empregador, não há empregador.
Estamos preparados para a robotização?
Estamos um pouco melhor preparados para a robotização. Em Portugal, por exemplo, houve um aumento importante da escolarização, os testes PISA da OCDE vão no bom sentido para o país, o que é positivo. Estamos um pouco melhor preparados porque é preciso mudar qualificações, o emprego vai desaparecer massivamente em alguns sectores. Na banca já só existe trabalho altamente qualificado, o trabalho qualificado está a desaparecer por processos de robotização, assim como na indústria automóvel, etc… Mas estão a surgir empregos noutros sectores, não podemos ser pessimistas.
Há quem defenda que, com a redução da carga horária e com o aumento das horas disponíveis, há margem para a criação de empregos, por exemplo, na indústria recreativa.
Sim, creio que há duas novas fontes de emprego. Primeiro, há toda uma série de sectores para os quais há uma procura importante que ainda não está satisfeita, em áreas criativas, de inovação, cultura, ócio, ligados aos cuidados da pessoa, que exigem relações interpessoais e que não podem ser substituídos por robôs, pelo menos num prazo imaginável. Aí vai existir muita criação de emprego, o que já está a acontecer e vai acelerar.
Por outro lado, uma redução da carga horária teria que ser feita de forma paulatina, gradual, no tempo, para evitar traumas ou reduções importantes do rendimento. Acredito que não seria tão negativo como a robotização, em Portugal e noutros países, temos que enfrentá-lo como oportunidade, pode reduzir a carga de trabalhos penosos e tem potencial de produtividade e bem-estar.
Temos, sim, que ser mais vigilantes sobre a mudança das relações laborais. Na economia digital as relações laborais assumem várias facetas, há menos trabalho assalariado tradicional e surge agora todo o tipo de empregos: trabalhadores por conta própria, temporários, internos, com isenção de horário, a tempo parcial, etc. Isto é algo de grande envergadura, com uma implicação massiva nas políticas de emprego.
A tendência é para o trabalho valer cada vez menos e ser cada vez menos protegido?
A resposta não deve ser menos protecção do trabalho, seria um erro. Levaria a uma precarização do trabalho, a um sentimento de insegurança que já se vive em vários países e que explica, de certa forma, o crescimento das desigualdades e a fragmentação dos próprios sistemas políticos. Há países muito difíceis de governar porque a oferta política se desagrega à medida que se estende a insegurança laboral.
E ainda não falámos de um problema que Portugal enfrenta, embora não seja exclusivamente nosso, que é o envelhecimento da população.
Creio que levanta a questão sobre quem vai pagar as pensões. É um desafio demográfico sobre a população jovem e esperamos que muitos dos que saíram voltem agora e que a economia portuguesa recupere, assim como os outros países. Por detrás deste desafio demográfico está a mudança de modelo económico, que implica a alteração do trabalho assalariado: como vamos financiar as pensões quando o trabalho assalariado pesa menos na economia?
Qual é a solução?
É preciso ampliar a base de financiamento das pensões, é preciso apoiar a financiamento não só através das quotizações sociais tradicionais, mas também com outro tipo de impostos ou rendas. Por exemplo, em França aplicaram um imposto sobre todos os rendimentos, não só do trabalho, e isso amplia a base de financiamento das pensões e da segurança social em geral, torna-a mais estável e resistente a alterações.
Um imposto único?
Pode ser um imposto único e independente do tipo de rendimentos, pode ser do trabalho, capital, imobiliário, etc. É o mesmo imposto para todos os rendimentos.
Portugal está finalmente a corrigir o défice orçamental, mas com a crise ficou com uma das maiores dívidas da Europa, já ronda os 130%. É impossível reduzir o défice e a dívida e ao mesmo tempo aumentar a despesa social? O Governo está obrigado a fazer escolhas nos próximos anos?
Essa é a quadratura do círculo, é complexo e requer toda a arte da política. Não é fácil. Mas há margem, graças ao crescimento económico, para reduzir o défice e atender a necessidades sociais importantes. Primeiro, é preciso seguir políticas de crescimento. Em segundo lugar, é importante evitar falsas soluções: aumentar gastos indiscriminados e reconsiderar gastos desnecessários.
A dívida pública é muito elevada e há que ter em conta que estamos a viver uma situação excepcional. O Banco Central Europeu ajudou muito na recuperação, é preciso não esquecer.
Mas sabemos que essa ajuda está no limite.
Exatamente. É uma política temporal e já começaram a normalizar as condições. Quando normalizarem totalmente vai cair o verdadeiro impacto total da dívida pública, acredito que se os países não adoptarem uma estratégia credível de redução da dívida a médio prazo este impacto pode repercutir-se no prémio de risco. Não é fácil, mas há diferentes opções. O défice ronda os 2%, o que permite uma redução gradual da dívida pública sobre o PIB. Uma redução adicional ajudaria ainda mais, e não tem que prejudicar o crescimento da economia.
Aqui a quadratura do círculo será arranjar ainda espaço para alguma despesa social.
Creio que existe. Primeiro, porque a sociedade o exige, sobretudo os jovens, que se mostram desencantados com a crise. Além disso, é preciso dizê-lo, Portugal tem a grande vantagem de ter uma administração pública fortemente comprometida e com uma grande capacidade de implementação das políticas públicas.