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Reportagem

Viver com dor de dentes

03 ago, 2017 - 19:07 • Dina Soares

Em Setembro de 2016, chegaram aos centros de saúde os primeiros médicos dentistas. Exactamente 37 anos depois da criação do SNS, a saúde oral entrou timidamente no sector público. O Ministério da Saúde promete, até ao final do ano, colocar dentistas em 50 centros de saúde, mas o bastonário da Ordem diz que são necessários pelo menos 6.500 dentistas no SNS.

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Reportagem de Dina Soares, com sonorização de André Peralta

O tratamento do senhor Horácio começou há três meses. Regularmente, entra no consultório da dentista Sandra Almeida, no Centro de Saúde da Moita, para tratar os poucos dentes que lhe restam e arrancar os que já não têm conserto. Os rendimentos do senhor Horácio não chegam para tratar da boca num consultório privado. Só agora, com a abertura de um gabinete de saúde oral no centro de saúde, é que conseguiu, finalmente, fazer o que poucas vezes fez na vida: ir ao dentista.

Sandra Almeida chegou ao Centro de Saúde da Moita, na margem Sul do Tejo, há um ano. Todos os dias, trata, em média, 19 pessoas como o senhor Horácio. Tal como ele, quase todos os pacientes desta médica dentista chegam à consulta com a grande maioria dos dentes estragados e sem recordação do último tratamento dentário que fizeram. Para alguns, é mesmo uma experiência nova.

Sandra Almeida faz parte do programa piloto de saúde oral pública, que começou em Setembro de 2016, em 13 centros de saúde. Nos primeiros meses, o tratamento era só para pessoas com doenças graves ou crónicas. Desde o início deste ano, é aberto a todos os utentes, desde que referenciados pelo médico de família.

“Os dentes destas pessoas estavam, e ainda estão, a precisar muitos de cuidados. Há pessoas com 80 anos que nunca foram ao dentista. O que acontece é que, ou os dentes caem sozinhos, ou partem-se, e vivem assim. A saúde oral para eles não existe”, lamenta a médica dentista.

Viver sem dentes tem sido a única solução para quem não pode pagar os tratamentos nos consultórios privados. Quando começou, o Serviço Nacional de Saúde não contemplava a saúde oral, e por isso os dentistas ficaram fora do sistema.

Em 2009, foi criado o cheque dentista, para grávidas, beneficiários do complemento solidário para idosos, portadores de VIH/Sida e crianças entre os 7 e os 16 anos. Desde então, mais de dois milhões e meio de pessoas tiveram acesso a tratamentos dentários por esta via. Só no ano passado é que os dentistas chegaram aos centros de saúde.

34% dos portugueses nunca vão ao dentista

Além das pessoas mais velhas, Sandra deparou-se também com uma realidade inesperada. A das crianças que ainda não têm idade para aceder ao cheque dentista, mas já precisam de tratamentos. “Lembro-me de uma criança de 5 anos que chegou aqui com os dentes todos careados. Todos. O que é que vamos fazer com uma criança que não vai colaborar e que precisa de extracções? Não podia arrancar-lhe os dentes todos. Como é que ela ia comer? Foi um caso que me deixou muito angustiada.''

Por tudo isto, não admira que os portugueses tenham os dentes tão mal tratados. Orlando Monteiro, bastonário da Ordem dos Médicos Dentistas, dá conta dos resultados do mais recente Barómetro de Saúde Oral, que também revela que 34,3% dos portugueses nunca vão ao dentista ou só o fazem em situação de muita urgência, 46,7% não vão ao dentista há mais de um ano, apenas 28% dos inquiridos têm a dentição completa e 37% têm falta de mais de seis dentes. Mais de um terço não vai ao dentista porque não tem dinheiro para pagar as consultas.

Custódio Pina, que aguarda a sua vez na sala de espera do Centro de Saúde da Moita, confirma. “Pediram-me 50 euros para arrancar um dente, quem é que pode pagar isso? Eu não tenho esse dinheiro para dar por um dente.” Como já entrou no sistema, Custódio consegue marcar as consultas com regularidade mas a médica Sandra Almeida tem, neste momento, uma lista de espera de cerca de dois meses e a tendência é para aumentar.

''Agora as listas de espera estão a crescer muito porque os médicos de família estão a referenciar muito mais pacientes. A este ritmo, não vou conseguir atender toda a gente. Era urgente ter mais um dentista neste centro de saúde que serve 22 mil utentes residentes numa área geográfica que vai de Pegões ao Barreiro ”, avisa Sandra Almeida.

Dentistas nos centros de saúde já atenderam 5 mil pessoas

A capacidade de atendimento no Centro de Saúde da Moita está a chegar ao seu limite. No balanço global até Junho, o Ministério da Saúde indica que os 13 centros de saúde integrados no projecto-piloto – e localizados na margem Sul do Tejo, na região Oeste e no Alentejo - realizaram 18 mil consultas a perto de cinco mil doentes. Quase 2 mil já terminaram os tratamentos, os outros 3 mil estão ainda a ser tratados.

Até ao final do ano, o Ministério prevê ter dentistas em 50 centros de saúde. Além dos 26 médicos que já exerciam a sua profissão no âmbito do Serviço Nacional de Saúde, o Governo promete contratar mais treze dentistas.

Os novos gabinetes de saúde oral deverão funcionar em todo o território continental. A Norte está prevista a abertura de 25 centros, no Centro serão mais seis, na região de Lisboa e Vale do Tejo está prevista a abertura de onze, o Alentejo será contemplado com mais um e no Algarve está planeada a abertura de três.

O bastonário da Ordem dos Médicos Dentistas, Orlando Monteiro, aplaude a iniciativa mas considera que será muito difícil, por esta via, garantir que Portugal consiga deixar de ser o segundo país da União Europeia mais mal classificado em matéria de saúde oral. “Ainda estamos muito longe da média europeia porque temos dois estratos da população totalmente distintos. Um com capacidade económica e com informação, que acede à medicina dentária no sector privado. Outra população, que é quase metade, que não tem capacidade económica e que vê a sua saúde oral muito comprometida.”

SNS precisa de 6.500 dentistas

Apostar numa solução que passe apenas pelo sector público exige um investimento que o bastonário considera irrealista. “De acordo com as recomendações internacionais, o rácio deve ser de um dentista por 1.500 a 2.000 doentes, o que já é muito para uma população que tem tantas necessidades. Fazendo as contas, seriam precisos 6.500 dentistas no SNS, o que implicaria, só em vencimentos, uma despesa de 250 milhões de euros por ano. Isto sem contabilizar os assistentes dentários, que são obrigatórios, equipamentos e materiais.”

Para o bastonário, há ainda outro aspecto que falta resolver: neste momento, os dentistas colocados nos centros de saúde têm apenas contractos de um ano. Falta criar uma carreira para estes profissionais no serviço público.

Com a pressão cada vez maior por parte dos utentes, Orlando Monteiro considera fácil de prever que esta solução não vai conseguir dar resposta às necessidades de toda a população.

“Tem que se procurar nos cerca de 6.500 consultórios existentes, outro tipo de acordos para que toda a população possa ter acesso a cuidados básicos de saúde oral”, propõe o bastonário.

“Há várias fórmulas e nenhuma delas conflitua com as outras. Podemos ter centros de saúde com médicos dentistas, dentistas em alguns hospitais e um sector privado que possa, através de um seguro público, atender quem não tem meios para pagar.”

O actual sistema tem ainda outro problema por resolver. Como garante apenas cuidados de saúde primários em medicina dentária e a esmagadora maioria dos doentes chega ao consultório com poucos dentes em condições de serem salvos, era importante assegurar um serviço de próteses, o que ainda não acontece. Ou seja, os doentes ficam tratados mas desdentados.

Sandra Almeida reconhece que isso limita um pouco o tratamento, sobretudo no que toca à decisão de arrancar dentes.

Comentários
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  • António Costa
    04 ago, 2017 Lisboa 01:16
    Covinha era investigar o quanto vão receber estes dentistas (e apenas eles em bruto) que com "sorte", recebem 700€ e nem são considerados Médicos Dentistas mas sim equiparados a "técnicos superior de saúde" (estamos a falar de pessoas que realizam cirurgias), serão mais um caso de falsos recibos verdes e mais, investigar quem são as pessoas beneficiadas no meio de isto tudo (visto que seria mais barato para o estado fazer acordos com clínicas de MD singulares e não de grandes grupos), pois nem o MD nem o paciente são beneficiados.

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