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"Treblinka", de Sérgio Tréfaut

Há fantasmas a circular em comboios para nos lembrar que o horror se repete

13 jul, 2017 - 19:32 • Catarina Santos

Depois de "Alentejo, Alentejo", Sérgio Tréfaut regressa aos cinemas com memórias de sobreviventes do Holocausto. Sem usar uma única imagem de arquivo, o realizador pega em vozes do passado, pede-nos a imaginação emprestada e lembra que "tudo volta a acontecer".

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Há fantasmas a circular em comboios para nos lembrar que o horror se repete

O som repetitivo das carruagens a avançar sobre os trilhos serve de fio condutor para a memória. É como se aqueles comboios seguissem em marcha atrás permanente, enquanto vozes nos contam histórias que outros procuraram esquecer. Sérgio Tréfaut pegou em vários testemunhos de sobreviventes dos campos de extermínio nazis e deu-lhes nova vida no filme “Treblinka”, que estreia esta semana nos cinemas portugueses.

A ideia do filme começou a ganhar forma quando o realizador conheceu a escritora e realizadora Marceline Loridan-Ivens, mulher de Joris Ivens e sobrevivente do campo de Birkenau. Reconheceu nela uma carga comum à maioria dos sobreviventes do "horror absoluto". Aquela "forma de viver entre fantasmas", algo "desfasados do mundo", deixava-o "fascinado", conta, em entrevista à Renascença.

Nos vários testemunhos que Tréfaut foi recolhendo para construir o filme, encontrou uma certa “má consciência de ter sobrevivido” e uma necessidade de afastamento do que se viveu. "O esquecimento era objectivo dos nazis, mas era também muito importante para os sobreviventes", sublinha. Marceline, por exemplo, só contou a sua experiência 50 anos depois, porque, “quando saiu do campo, a única coisa que a mãe dela queria saber era se ela ainda era virgem”.

O livro que serviu de espinha dorsal do filme foi escrito pelo judeu polaco Chil Rajchman, que tinha 28 anos quando foi colocado num comboio rumo a Treblinka. Mais de 750 mil judeus foram ali exterminados, incluindo irmã mais nova de Rajchman. O polaco trabalhou no campo como "sonderkommando" (prisioneiros que eram poupados durante algum tempo e que tinham de garantir uma série de tarefas). Escreveu o seu testemunho em 1945, mas o mundo só o conheceu em 2009. "O Chil Rajchman morreu sem publicar o seu livro, foram os filhos que o fizeram", recorda o realizador. “As pessoas, para viverem, tiveram que tentar se afastar dos seus fantasmas e tentar entrar numa vida normal.”

O que Sérgio Tréfaut faz no documentário "Treblinka" é resgatar esses fantasmas, dar-lhes novas vozes e colocá-los a circular em comboios actuais, nos mesmos cenários do passado - na Ucrânia, na Polónia, na Rússia. Os textos de Chil Rajchman são vertidos no filme pela voz do actor russo-ucraniano Kirill Kashlikov. Para os pensamentos da personagem interpretada por Isabel Ruth, Sérgio Tréfaut escolheu a voz de Nina Guerra (tradutora de grandes obras da literatura russa para português) e seleccionou vários testemunhos de sobreviventes para dar corpo a essas reflexões - incluindo conversas e escritos de Marceline Loridan-Ivens.

O realizador nunca nos mostra imagens de campos de concentração. Nunca nos dá imagens que ilustrem o horror descrito pelas vozes. Pede, ao invés, que emprestemos ao filme o nosso banco de imagens pessoal. "É um filme que funciona, em grande parte, a partir da imaginação do espectador". Também por isso, o filme deixa grande liberdade de interpretação a quem o vê. Não haverá dois espectadores que façam a mesma viagem naqueles vagões da memória mais negra.

Do Ruanda à Síria. "Tudo volta a acontecer"

O subtítulo do filme diz-nos que “tudo volta a acontecer” e o realizador escolheu-o “por oposição ao mote do pós-guerra, que dizia ‘nunca mais’”. O tempo provou que não era verdade. Apesar de a “máquina eficiente de extermínio nazi” não se ter voltado a reproduzir em toda a sua dimensão, os genocídios repetiram-se em sítios como o Ruanda, a Bósnia e não cessaram no presente. “Era fácil, enquanto estava a montar este filme, ver imagens na internet de como o Estado Islâmico exterminava sistematicamente populações diversas quando chegava às aldeias. Na universidade de Mossul, deitaram todos os estudantes no chão e era um tiro na cabeça de cada um”.

Sérgio Tréfaut identifica “o mesmo sentimento de impotência” perante estas realidades que o que “existiu durante a II Guerra Mundial, quando um francês, um alemão ou um polaco via as populações de judeus serem levadas”. Sublinha que o filme não tem qualquer pretensão moralista, que não quer apelar a nenhum tipo de “má consciência” colectiva da sociedade, mas antes procurar exemplos de como manter a sanidade, apesar do horror - tal como “os verdadeiros sobreviventes, aqueles que conseguiram viver 50 anos depois do horror” conseguiram “encontrar uma parte de alegria e de felicidade na vida” que lhes permitiu continuar.

Uma capacidade que leva o realizador a sentir “uma enorme admiração pelas pessoas que chegam hoje de um outro tipo de horror, que é a Síria, e que conseguem encontrar alegria na forma de viver aqui, quando a família delas morreu.”

"Treblinka" sucede a "Alentejo, Alentejo", o documentário que Tréfaut fez sobre o cante alentejano ainda antes de o vermos elevado a Património Imaterial da Humanidade.

Para o autor de documentários como "Lisboetas" ou "A Cidade dos Mortos", saltar entre temáticas e projectos é natural. “Creio que muitos realizadores têm várias panelas ao lume ao mesmo tempo. Estava em acabamentos do ‘Alentejo, Alentejo’ e estava simultaneamente a organizar viagens à Ucrânia, à Rússia, à Polónia”, para terminar “Treblinka”. E o filme seguinte também já não tarda. Vai chamar-se "O Pão" e é uma adaptação da "Seara de Vento", de Manuel da Fonseca.

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