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Entrevista

Europa vai poder forçar países a serem solidários, diz director do Gabinete de Apoio ao Asilo

05 jul, 2017 - 20:22 • Catarina Santos

É possível que nem todos os casos tenham sido tratados "super-eficientemente", admite o director do Gabinete Europeu de Apoio ao Asilo, o português José Carreira, mas os centros de registo estão hoje prontos para avaliar os "méritos e a necessidade de cada migrante".

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Europa está pronta para "responder a outras crises" migratórias
Europa está pronta para "responder a outras crises" migratórias

O director do Gabinete Europeu de Apoio ao Asilo (EASO, na sigla original) defende que a Europa foi apanhada de surpresa por uma crise de dimensões sem precedentes e considera natural que tenha demorado quase dois anos a afinar uma resposta. Diz que "as lições extraídas" servirão de base a um novo sistema de asilo europeu, com instrumentos para obrigar os Estados-membros a serem solidários.

José Carreira é português, mas trabalha fora do país há 30 anos, ocupando cargos de gestão em empresas privadas e públicas, incluindo agências europeias e das Nações Unidas, na Europa, África e Ásia. Com formação em Economia e Finanças, trabalhou em áreas que vão da consultoria em gestão financeira, segurança aérea, segurança e informação até ao controlo de fronteiras, asilo e migrações. Desde Abril de 2016 dirige o EASO, com sede em Malta.

Um relatório do organismo que dirige, divulgado esta quarta-feira, revela que mais de um milhão de refugiados pediu asilo na Europa em 2016 e deixa claro que os estados-membros demoraram a adaptar os seus serviços de imigração, mas acabaram por conseguir aumentar a capacidade de resposta.

Quando a Renascença fez reportagem na ilha de Lesbos, na Grécia, registou várias queixas de migrantes sobre falta de informação fidedigna nos "hotspots" e até casos de pessoas que tinham de fazer chamadas por Skype para submeterem os pedidos de asilo. José Carreira admite que a situação nesses centros de registo de migrantes foi caótica no início, mas garante que "hoje temos 'hotspots' muito bem organizados, com uma capacidade de processamento no local que pode responder a outras crises".

Esta entrevista foi realizada há cerca de um mês, quando o responsável pelo EASO participou nas Conferências do Estoril.

O Gabinete Europeu do Apoio ao Asilo tem sido um bombeiro muito atarefado nestes últimos dois anos. O sistema não estava claramente preparado para esta crise. Neste momento, já está?

Este é um caminho que começa e nunca acaba. Estamos muito melhores do que há um ano e do que há dois anos. A Europa tinha um sistema de asilo que foi discutido há quase duas décadas e que começou a vigorar praticamente quando começa esta crise. Alguns dos diplomas mais importantes, como o [Acordo de] Dublin, e as directivas de qualificação e de recepção, começaram a vigorar praticamente em 2014 e foram desenhadas para uma situação que não tinha crise, de afluxo normal de imigrantes.

A primeira grande parte da resposta foi através de um pedido para se reformular todo o sistema jurídico legal. E temos uma resposta à crise com a criação dos "hotspots" [centros de registo nos pontos de entrada de migrantes] no fim de 2015. A primeira vez que foi criado era um pouco confuso porque tínhamos a sociedade civil, tínhamos as autoridades gregas, de asilo e recepção, as autoridades policiais, as agências europeias, agências internacionais como as Nações Unidas, e todos tentavam fazer o melhor mas não de uma forma coordenada.

Isto foi há um ano e alguns meses, portanto não é surpreendente que as coisas tenham começado desta forma, devido aos números que tínhamos, e que hoje estejam muito melhores. E estão, de facto. Hoje temos "hotspots" muito bem organizados, com uma capacidade de processamento no local que pode responder a outras crises – mas nunca em números daquela maneira, porque 10 mil por dia numa ilha grega nunca poderão ser registados e processados.

A União Europeia (UE) é frequentemente acusada de ter demorado demais a responder a uma emergência desta dimensão.

Muita gente diz que é preciso fazer mais, que a migração tem de ser gerida de outra forma... Com certeza, estamos todos de acordo com isso, mas quando falamos de refugiados – ou de outras pessoas que precisam de outro tipo de protecção, porque nem todos são refugiados – precisamos de ter um quadro legal básico para dizer se a pessoa A, B ou C que segue ilegalmente pelas fronteiras europeias precisa de protecção ou apenas vem para cá com a expectativa de ter uma vida melhor.

Portanto, temos de ver até onde é que podemos dizer que a UE não tem tido progressos em muitas áreas. A UE não só tem sido nas últimas décadas o maior doador em termos de ajuda ao desenvolvimento económico [nos países de origem], como está agora a juntar todos os programas de migração e asilo.

Os críticos dizem que é para exportar o problema, para manter o problema fora da Europa. Eu tenho uma opinião diferente. São esforços muito grandes, muito concretos para resolver alguma parte dos problemas que originam migração e pedidos de asilos. Definitivamente, não queremos importar o problema para a Europa, mas não queremos ignorar o problema "per si". A UE, as instituições europeias, os Estados-membros tomaram a iniciativa há um ano e as Nações Unidas o que fazem – e muito bem – é tentar replicar essa aproximação a nível mundial.

Temos três pilares fundamentais: a resposta à crise foi dada e as crises estão geridas, os números que temos na Grécia são muito menores, as condições de trabalho evoluíram muito e a capacidade de processamento e de entendimento com a Turquia e com países limítrofes é muito grande. A assistência financeira para a Turquia, que também é usada depois no Líbano e na Jordânia, só este ano tem projectos na ordem dos 4 mil milhões de euros. São projectos de escolas, de formação, de criação de empregos, saúde pública, apoio alimentar e sanitário de toda a espécie aos campos. E muitos dos refugiados nesses países não estão em campos, a maior parte não está...

Segundo a Direcção-geral da Protecção Civil e das Operações de Ajuda Humanitária Europeias, 90% dos migrantes não estão em campos de refugiados, na Turquia.

Exactamente. E a UE não só tem programas normais com a Turquia, como tem iniciado um programa de contactos com todos esses países à volta que é inovador. Tão inovador que o próprio sistema das Nações Unidas está a tentar replicá-lo a nível mundial. Temos dado uma resposta muito forte à crise e esperamos que a terceira componente, que é dirigirmo-nos directamente às origens do problema, possa prevenir crises como as que tivemos nos últimos 24 meses. Os números decresceram muito a partir de metade de 2016 e agora, no princípio de 2017, o número total de chegadas era inferior a 60 mil.

Disse que de há um ano para cá a evolução é muito significativa nos "hotspots". Então porque é que continua a ser tão difícil escoar aqueles que são elegíveis para recolocação, por exemplo? Portugal ofereceu-se para receber 10 mil pessoas e até agora recebeu mil e poucas. Porque é que é tão difícil fazer essas pessoas chegar cá?

Primeiro, tenho de fazer uma clarificação. A partir do dia 20 de Março de 2016, todos os que chegaram, que são números muito mais reduzidos, não são elegíveis para recolocação. São só os que chegaram antes. O "stock" elegível para recolocação também tem a ver com nacionalidades. De acordo com a lei europeia e com as decisões dos Estados-membros, nem todas as nacionalidades se qualificam.

Sim, são reavaliadas de três em três meses.

Por exemplo, os iraquianos não se qualificam há bastante tempo, porque o nível de reconhecimento de protecção que é dado baixou bastante, para menos de 75%. E um dos critérios era que mais de 75% dos casos de uma determinada nacionalidade fossem reconhecidos como casos que precisavam do estatuto de refugiado ou doutro tipo de protecção. E os iraquianos que começaram a chegar a partir dessa altura não vêm a fugir de situações que lhes dêem a possibilidade de terem protecção na Europa.

O mesmo acontece com os afegãos... Por isso é o número de 160 mil que os Estados-membros se comprometeram a recolocar foi baixando, porque se chegou à conclusão que os elegíveis eram menos. Ainda assim, há uma diferença muito grande entre aqueles que efectivamente foram recolocados e os elegíveis, que serão agora na ordem dos 100 mil. E que a Comissão queria recolocar até Setembro deste ano. O que é que está a falhar?

Dos 100 mil, nós estamos perto dos 20 mil, com cerca de 14 mil vindos da Grécia e 5 ou 6 mil a partir de Itália. São números muito pequenos, ainda. Mas, muitas vezes, programas como estes só depois de uma certa estabilidade e de um certo entendimento começam a ter resultados. Eu ainda estou confiante que se possa completar esses números até Setembro. O que pode acontecer é que já não haja tantas pessoas para serem recolocadas na Grécia e na Itália – os únicos países que beneficiam deste programa especial.

Foi um programa que está em vigor e com o qual se aprendeu bastante. Repare que no Dublin IV vai haver um mecanismo de distribuição que vai ser permanente. É um instrumento de solidariedade, uma forma de obrigatoriamente recolocar pessoas em situações de crise, a partir dos pontos de origem. Esse mecanismo de repartição vai ser operado pela nova agência de asilo, vamos passar muitas directivas para regulamentos – é um aspecto subtil, mas é muito importante, porque quer dizer que toda a parte legal deixa de ser voluntária para ser obrigatória. Daí as grandes discussões que estão em Bruxelas e algum atraso nas decisões, mas estou convencido que estes novos pacotes legais vão ainda ser aprovados este ano, particularmente o que diz respeito à minha agência.

O que é que falhou? Falhou porque os países têm razões várias. Há três grandes blocos de países: há os que não querem sequer falar de recolocação, porque dizem que não é uma forma de resolver o problema; há os que vão fazendo, mas não com muita vontade; e há os que, como Portugal, tomaram [o assunto] como muito sério e que trouxeram cerca de 1.600 pessoas até agora, se não estou errado. Mesmo assim, ainda não é o número total que Portugal deveria ter, mas muito perto.

Eu insisto, porque é uma questão que as pessoas fazem aqui: se abrimos as portas, porque é que não vêm? Apesar de haver essa falta de solidariedade de alguns países, estamos solidários. Porque é que eles não vêm?

Vou remetê-la para algumas declarações que algumas pessoas das ONG e da Plataforma de Apoio aos Refugiados fizeram. Há, de facto, uma capacidade e uma vontade de trazer as pessoas, nem sempre depois isso é transformado em decisões políticas ou das autoridades que são competentes para decidir.

Há uma série de dificuldades práticas que levaram a que o programa não tenha sido tão rápido e eficaz como poderia ser. Eu estou convencido que até Setembro, e talvez com um adiamento de seis meses, os números sejam cumpridos. Mas muito mais importante do que esses números vai ser que estas lições que estamos a extrair possam ser depois transformadas num novo diploma legal, que possa permitir à UE no seu conjunto, de uma forma obrigatória, já não voluntária, lidar com situações de crise de uma forma solidária.

Coloco-lhe a pergunta que foi colocada como tema principal do painel onde esteve nas Conferências do Estoril: a UE vai sobreviver a esta crise migratória?

A UE talvez seja o território, no mundo, que tem sobrevivido mais a crises. Ouvimos a ministra da Administração Interna portuguesa dizer que a própria Convenção de Genebra é uma resposta à crise migratória pós-II Guerra Mundial europeia. Daí vem o Alto Comissariado das Nações Unidas e a convenção número 51 é criada em resposta a uma crise europeia. Depois, mencionei-lhe a Primavera Árabe, que serviu de base já para uma certa preparação para onde estamos. E a crise de 2015 e 2016 não existe, praticamente. O que existe é uma aprendizagem para lidar com o futuro. Os números que chegam hoje à Grécia são mínimos...

Mas em Itália não...

Em Itália continuam os mesmos números, muito irregulares, porque a situação na Líbia não é comparável à situação nos países que mencionei – a Turquia, o Líbano e a Jordânia, que são países de trânsito e de acolhimento e com os quais é possível trabalhar. Na Líbia temos uma situação que todos conhecemos.

Mas há quem defenda, inclusivamente a presidência de Malta, que se fizesse um acordo com a Líbia semelhante ao que se fez com a Turquia...

Sim, o próprio presidente [Jean-Claude] Juncker diz que é preciso um acordo. Até onde poderá haver uma semelhança... É muito reduzida. Começa pelo facto de não haver um governo reconhecido na Líbia. Existem três facções poderosas, estamos a tentar trabalhar com a mais moderada, e há um programa de apoio às novas forças, como a guarda costeira líbia e outras. Provavelmente, a EASO estará envolvida nisso também.

No ano passado, na Grécia, no pico do caos, havia sobretudo muita dificuldade em garantir informação fidedigna, em conseguir explicar às pessoas os seus direitos para tomarem decisões informadas. Continuamos, por vezes, a ouvir relatos de situações dessas. Recentemente, algumas organizações humanitárias denunciaram que há casos de pressão sobre os requerentes de asilo para que não recorram de decisões negativas relativas aos seus pedidos de asilo. Como é que está a situação no terreno?

Eu conheço esses rumores e outros, como [os que dizem] que a qualidade dos processos não é garantida e que alguns grupos vulneráveis não têm a atenção necessária. É possível que haja algum caso ou outro que não seja tratado super-eficientemente, mas posso-lhe dizer que temos programas de qualidade nas nossas entrevistas, temos balcões de escalonamento virtuais, portanto é possível que um utilizador que tem uma dificuldade na entrevista tenha apoio localmente e a nível central para continuar essa entrevista. Posso-lhe dizer que temos cerca de 300 pessoas a trabalhar nas ilhas gregas e cada caso merece entre três a seis horas de entrevista para avaliar os méritos e a necessidade de cada migrante.

E consegue-se garantir isso para cada um?

Consegue-se garantir para todos.

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