Tempo
|
A+ / A-

Estudar e jogar futebol. A "mental coach" de Éder diz o que deve ser feito

27 jun, 2017 - 15:51 • Sérgio Costa

Susana Torres, a "mental coach" de Éder, o herói improvável da final do Europeu de futebol, trabalha também com futebolistas jovens e adolescentes que estudam e sonham ser craques. "Têm de dividir o seu tempo, ter tudo estruturado na cabeça", o que nem sempre é fácil.

A+ / A-

Tornou-se conhecida - no país e no mundo - por ter exercido as funções de "mental coach" de Éder, o herói improvável da final do Europeu de futebol.

Susana Torres não trabalha apenas com craques ou com comuns profissionais de futebol. Acompanha, também, jovens futebolistas, desses que, ainda em idade escolar, sonham ser jogadores de futebol.

"Há dois pilares muito importantes na vida destes jovens: a família e os clubes", sublinha Susana Torres, advertindo: "Estes dois pilares devem estar em comum acordo naquilo que é a gestão do dia a dia e das expectativas dos jogadores."

Cada vez mais jovens - e famílias - têm consciência de que a aposta exclusiva no futebol é de alto risco. Por isso, importa ter um "plano A" e um "plano B" e, por muito que sonho empurre o futebol para o primeiro lado, o "plano A" deve ser o da escola. Depois, ver-se-á.

São milhares as crianças que desenvolvem o gosto e a capacidade para jogar futebol. Frequentam escolas, as chamadas escolinhas de futebol, e anseiam ser estrelas. Como é que se gere desejo sabendo que a maioria não consegue chegar "lá"?

Eu diria que, nessas idades das escolinhas, quem gere são os pais. São eles que decidem e fazem a gestão do tempo e dos horários e, até, a gestão da logística. Eu própria sou mãe de três filhos e um deles também joga futebol numa escolinha. Sei exactamente o que isso é. Quando eles são pequeninos, isto é apenas um sonho, uma ideia. Há um outro que tem, de facto, definido que um dia quer ser jogador de futebol. A maioria faz isso por diversão, gosta de futebol, gosta de estar com os amigos e não tem propriamente aquela ideia de que "é isto que eu quero fazer". Isso não está bem definido, não faz parte de um plano de vida, porque ainda são muito pequeninos.

Mas eles crescem…

Na idade dos jogadores que ouvimos na reportagem, sim. Essa ideia já faz parte deles, já está bem planeada. É uma vontade que eles já têm bem definida nas suas cabeças.

E como é que se gere já em plena adolescência a ideia de que nem todos conseguem lá chegar?

Trabalho com alguns jovens desta idade, na idade dos 17 anos, que são jogadores e também estudam. Da minha experiência, acredito que eles têm essa noção e eu tenho a felicidade de trabalhar com miúdos espectaculares, que são brilhantes alunos. Alguns deles jogam, inclusivamente, nas selecções e verifico que são jovens muito disciplinados e que têm sempre um "plano B". Ouvimos isso. Eles têm essa consciência de que poderá não ser possível. Mais do que não ser possível por força das suas qualidades e capacidades, também pode acontecer alguma coisa, como uma lesão grave. Pode acontecer por alguma circunstância que lhes aconteça na vida. Por isso, eles são muito dedicados na escola e têm a escola não como um "plano B" mas como um "plano A" .

Temos a ideia de que quem quer ser jogador perde o foco na escola, perde a vontade de estudar e concentra-se, sobretudo, em vir a ser jogador de futebol. Que estratégia deve ser usada para que se evite esse desligar dos estudos?

Há dois pilares muito importantes na vida destes jovens: a família e os clubes, com as equipas técnicas e o treinador. Estes dois pilares devem estar em comum acordo naquilo que é a gestão do dia a dia e das expectativas dos jogadores. A estratégia que eu acho mais correcta, se é que existe uma correcta, é que eles tenham um plano de vida, ou seja, logo de pequenos comecem a projectar, quer a sua carreira quer o "plano B", que, na maioria dos casos é um "A". Têm de dividir o seu tempo, ter tudo estruturado na cabeça. "Que tempo dedico ao futebol e que tempo dedico ao estudo?" Todas as boas academias em Portugal têm esta vertente muito bem planeada: a vertente do estudo. Eles conseguem estudar facilmente até ao 12.º ano e, depois, nas universidades também conseguem.

O Benfica está a promover o estudo universitário para os jogadores que estão na academia. Tudo isto é possível, mas é preciso que seja estruturado, até para que eles não tenham a ideia de que se não fizerem uma coisa não conseguem fazer a outra. Isto é totalmente mentira, é um mito. Tenho esta experiência de trabalhar com jogadores de 17 anos, miúdos que estudam no 11.º e 12.º anos e tenho experiência em equipas da I Liga que têm jogadores que são licenciados e mestrados. Temos o caso do João Afonso: está no Estoril e é mestrado. E há outros. Existem uma série deles que têm estudos e, portanto, tudo isto é possível desde que haja um equilíbrio e, essencialmente, um planeamento.

Qual é o trabalho de um "coach" de alta performance, como é o seu caso? O que é que o "mental coach" faz?

Trabalhar estes atletas é diferente de trabalhar um atleta que já tenha 25, 26 ou 27 anos, quando a sua profissão já é o futebol. neste caso, há uma componente e um acompanhamento completamente diferente. As alterações que nós fazemos são todas no campo da atitude. Promovemos uma alteração de comportamento, de atitude, de crenças, das coisas em que acreditam e a que prestam atenção e isto tem repercussões a todos os níveis e em todas as áreas da vida.

Quando trabalho com um atleta de17 anos, cuja componente escolar é importante e em que ele divide o seu dia entre o futebol e a escola, é importante dar-lhe outro tipo de ferramentas e de recursos para que ele possa ser também muito bom naquilo que ele faz. Felizmente, tenho alguns casos em que são brilhantes alunos. Acredito que estes alunos são alunos com competências diferentes, estão habituados a fazer sacrifícios, trabalham muito bem o foco, porque são obrigados a fazer isso em campo, são muito mais concentrados são, essencialmente, disciplinados, porque é isto que eles treinam no futebol. Todas estas competências trazidas para o contexto escolar fazem deles alunos muito focados e a capazes de tomarem decisões e de saberem estruturar o seu tempo de maneira completamente diferente.

Acha que devia haver uma diferenciação neste tipo de alunos? ou seja, deve haver um mecanismo diferente para acompanhar este tipo de alunos?

Acredito que seria benéfico para toda a genste que o sistema de ensino promovesse algumas alterações. Primeiro, porque só fazemos bem as coisas que gostamos de fazer e onde somos felizes. É aí que colocamos toda a nossa atenção e empenho e é aí que conseguimos brilhar e ser excelentes. Se eu achar que a escola é um sítio para onde vou por obrigatoriedade, muito rígido e não flexível o suficiente ponto de eu conciliar com as duas coisas, vou começar a pôr alguma coisa de lado. Aí, claro que a paixão do futebol vai saltar para primeiro plano e é por isso que muitos desistem. Acompanho um miúdo de 17 anos, que vai à selecção, cujo dilema é, precisamente, esse: se no próximo ano vai ter ou não horário para conseguir conciliar os treinos do futebol com a escola. Ele vai para o 12.º ano e este dilema não existiria se a escola fosse muito mais flexível, se tivesse um olhar diferente sobre este tipo de atletas. Não com todos, senão, um aluno tinha tratamento diferenciado só por pertencer a uma escola de futebol. Iam todos para lá...

A escola deveria ter a possibildiade de perceber quem são aqueles que têm capacidade para seguir uma carreira de futebol...

Sim. Perceber isso e isso tem a ver um bocadinho com o escalão em que eles jogam. Por exemplo, um jogador de selecção precisa dessa flexibilidade, porque está num nível diferente. Sim, isso seria benéfico para todas as partes.

Em que altura é que se percebe que um jovem poderá mesmo singrar no futebol? É possível perceber essas capacidades a partir de que momento e de que forma?

Os resultados são a melhor forma de medir a performance das pessoas e dos atletas e, ao fim e ao cabo, do comportamento que eles têm naquilo que estão a fazer. Portanto, não há ninguém melhor do que os treinadores e o próprio clube para perceber se aquele jovem tem capacidade para ser um jogador brilhante. Claro que, neste ponto, coloco sempre algumas ressalvas, porque a nossa opinião sobre aquilo que é o potencial de uma pessoa é só a nossa opinião e, muitas vezes, quando a exprimimos condicionamos a pessoa.

Um bom exemplo disto é a questão do Éder. Quando comecei a trabalhar com o Éder e lhe perguntei que objectivo é que íamos trabalhar, surgiu aquela questão de tentar descobrir qual seria o sonho dele, porque ele não tinha nenhum objectivo definido. Chegámos à conclusão de que era a Premier League e estabelecemos seis meses para isso. Recordo-me de chegar a casa e o meu marido dizer que eu não era boa da cabeça e dizer que eu não percebia nada de futebol. Só por isso é que colocava objectivos destes: o Éder na Premier League, em seis meses, saído do banco do Braga. Claro que a opinião que temos sobre a opinião das pessoas limita, porque, se eu conhecesse, se eu tivesse muita informação e uma opinião formada sobre o Éder, se calhar, teria limitado o objectivo e teria proposto pensarmos em alguma coisa mais exequível e mais realista.

As aparências iludem?

Eu acho que nem nós conhecemos as nossas próprias capacidades. Portanto, não devemos limitar por essa opinião. Devemos, sim, potenciar performances, desenvolver as pessoas e os jovens e tentar puxar por eles no sentido de desenvolver as capacidades, e há uma boa forma de eles próprias identificarem as capacidades. Um dos exercícios que fazemos, quando eu começo a trabalhar com um jovem, é eles próprios perceberem onde é que são realmente bons e onde é que poderiam melhores, coisas em que eles não são bons e poderiam, realmente, ser bons. São eles que chegam às conclusões e, depois, são definidas tarefas, tanto para desenvolverem aquilo em que acham que não são muito bons como para potenciarem as suas características melhores. Se eles estiverem habituados a potenciar a sua performance logo de pequenos, vão saber sempre chegar ao seu máximo potencial. Se houver alguém, inclusivamente os pais, a dizer “o meu filho não tem capacidade para isto, nunca chegará aqui, nunca chegará ali” ou a comparar os seus com os filhos dos outros...

Muitas vezes também acontece o contrário. Muitas vezes os pais…

... sobrevalorizam. Sim. Por isso, acho que tudo deve partir do próprio jovem. Deve ser ele a fazer uma auto-análise daquilo que são as suas competências e daquilo que ele acha que pode melhorar. Se for uma conclusão chegada por parte deles, ele vai querer melhorar. Se for alguém a dizer "tu devias fazer isto ou aquilo", normalmente, até pela idade, eles vão contrariar e vão fazer pior ainda. Portanto, não é a melhor estratégia para levar alguém a atingir uma boa performance.

Comentários
Tem 1500 caracteres disponíveis
Todos os campos são de preenchimento obrigatório.

Termos e Condições Todos os comentários são mediados, pelo que a sua publicação pode demorar algum tempo. Os comentários enviados devem cumprir os critérios de publicação estabelecidos pela direcção de Informação da Renascença: não violar os princípios fundamentais dos Direitos do Homem; não ofender o bom nome de terceiros; não conter acusações sobre a vida privada de terceiros; não conter linguagem imprópria. Os comentários que desrespeitarem estes pontos não serão publicados.

Destaques V+