Emissão Renascença | Ouvir Online
A+ / A-

Entrevista

Techfugees. "A tecnologia pode ser muito poderosa. Se não a usarmos, usam-na os traficantes"

23 jun, 2017 - 19:50 • Catarina Santos

Lisboa acolhe este fim-de-semana uma maratona de "geeks". Querem afastar os refugiados da "ratoeira da pobreza e do crime", colocando a tecnologia ao seu serviço. A jovem CEO da Techfugees diz à Renascença que não vai ficar à espera que a geração que criou esta crise lhe diga como a deve resolver.

A+ / A-

Se há coisa que os refugiados nunca largam é o telemóvel. É por ali que recebem as chamadas dos serviços de imigração e que, muitas vezes, iniciam o processo de pedido de asilo. É por ali que sabem notícias dos seus e que se informam sobre os passos que devem dar. Foi desta noção que nasceu a Techfugees, uma empresa dedicada a colocar a tecnologia ao serviço de migrantes e refugiados. Organiza conferências, workshops e maratonas de tecnologia - as chamadas "hackathons" - para encontrar soluções que lhes facilitem a vida. Este sábado e domingo a Fundação Calouste Gulbenkian recebe uma destas maratonas de 48 horas, em Lisboa.

Joséphine Gaube tem 28 anos e é CEO da empresa. Já foi por duas vezes apontada pela revista Forbes como um dos mais promissores jovens empreendedores com menos de 30 anos. Antes da Techfugees esteve à frente da Migrate, uma plataforma para ajudar refugiados a pedirem asilo noutros países.

Esteve em Portugal há algumas semanas, nas Conferências do Estoril. Em entrevista à Renascença, mostrou-se especialmente preocupada com migrantes e refugiados menores, que "facilmente serão pagos para fazer coisas que não fariam noutras circunstâncias", se forem deixados sem educação e não se integrarem. E se é no telemóvel que eles estão, é pelo telemóvel que a Techfugees quer ajudar a integrá-los.


Porque diz que a tecnologia é tão essencial para os refugiados como a comida?

As pessoas, na Europa, ficam surpreendidas por causa de os refugiados terem "smartphones", como se fosse um símbolo de que são ricos. Mas, se fugisse de um país porque sua casa foi incendiada ou porque foi ameaçado de morte, o que levaria consigo? Provavelmente levaria o seu telemóvel, porque tem todos os contactos da família e toda a informação disponível num só dispositivo. Tornou-se um bem essencial, tanto como a comida ou o alojamento. Sei que na Grécia há refugiados que gastam dois terços do seu orçamento em formas de estarem ligados à internet, de estarem ligados aos seus entes queridos.

Qual é a missão da Techfugees, exactamente?

Juntamos "geeks" (sejam refugiados ou não), como engenheiros, cientistas de dados e designers, durante um fim-de-semana, apresentámos-lhes desafios reais enfrentados pelos refugiados ou por Organizações Não Governamentais (ONG) e deixámo-los a pensar em formas de usar a tecnologia para resolver esses problemas e ajudar a aliviar as suas causas. Nesses eventos criam-se protótipos tecnológicos - como "chats" que dão informação aos refugiados assim que chegam, ou uma aplicação que lhes diz quem os pode acolher durante uma noite num raio de 500 metros.

O evento é só a ponta do icebergue. Cria condições para a inovação. Damos-lhes 48 horas para apresentarem algo funcional no palco, seleccionamos as poucas que achamos que são promissoras, colocamo-las num espaço de incubação e vemos o que acontece.

Qual é o objectivo maior de tudo isso?

O mais importante é que vamos educar uma geração que trabalha para a Google, para o Facebook e outras empresas que estão a mudar a forma como vivemos. Vamos capacitar essa geração para que entenda o problema dos refugiados por contactar directamente com eles. Queremos que pensem como criamos tecnologia com a ética e os princípios do trabalho humanitário. Por exemplo, não se absorve todos os dados pessoais de uma pessoa para os vender a alguém, com objectivos de marketing. Os refugiados são vulneráveis, enfrentaram ameaças de morte por causa da sua identidade, crenças, religião, raça... Por isso, não se pode recolher essa informação e partilhá-la em domínio público.

É um movimento de conhecimento partilhado para colocar as melhores tecnologias ao serviço dos deslocados, para que tenham acesso a educação, empregos, cuidados de saúde. E, no fim, se sintam incluídos na sociedade.

Na Jordânia, ainda recentemente, tiveram uma competição da qual saíram aplicações, desenvolvidas por refugiados, para solucionar problemas com o acesso a água. A ideia é desafiá-los também a criar tecnologia?

Sim, é muito concreto. Pedimos aos refugiados, através das ONG, localmente, para nos dizerem quais são os maiores desafios que enfrentam. Na Jordânia, por exemplo, a UNICEF disse-nos que havia um problema de falta de água e que metade dos poços tem fugas, desperdiçando essa água. Isto cria muitas tensões entre os locais e os refugiados. Mais de um milhão de refugiados estão no país e também usam essa água, o que agrava a insuficiência. Se conseguíssemos resolver as fugas de água, resolveríamos a tensão entre locais e refugiados e facilitávamos a integração.

Lançamos o desafio localmente, com ONG que trabalham há 20 ou 30 anos com refugiados, e pedimos protótipos concretos nessas "hackathons". Não queremos só ideias. Tens uma equipa, usa os teus talentos e mostra-nos o que fizeste num fim-de-semana para conseguir concretizar a tua ideia. Não importa se a ideia não é perfeita, importa que nos mostres a tua habilidade na construção do protótipo e como pensaste nele, que trabalho de equipa implicou, se respeitaste o princípio de segurança e privacidade dos dados, como concebeste o design da plataforma para se adequar à população a que se destina.

Têm conseguido obter apoios das maiores empresas de tecnologia?

Estamos a chegar lá. Temos pedido aos departamentos de responsabilidade social dessas grandes empresas. Temos muita sorte de ter a fantástica empresa [de media] Schibsted como parceira estratégica há dois anos. Os seus funcionários vêm aos nossos eventos e criam tecnologias novas com os refugiados, o que tem tido um grande impacto nesses funcionários e na sua motivação no trabalho para a empresa.

É interessante que a Schipsted procurou-nos depois de parte da sua equipa ter ido para o terreno ajudar uma equipa sueca a salvar pessoas no mar. Quando regressaram, perguntaram o que estava a empresa a fazer para ajudar refugiados. A Schipsted é uma empresa de media global, está em 30 países, em muitos locais onde nós também estamos, por isso funciona muito bem.

Um investidor de São Francisco que conheci há algumas semanas disse-me que esta tendência de usar a tecnologia para o bem comum vai crescer muito, porque a geração dos "millennials" quer saber se as empresas são socialmente responsáveis. É uma realidade que alguns compreenderam, outros talvez não, e é o que tentamos sublinhar quando abordamos empresas tecnológicas.

Disse nas Conferências do Estoril que um dos vossos objectivos é devolver aos refugiados o que eles perderam na fuga. Como é que isso se faz?

Enquanto organização, acreditamos que estamos a criar mudança porque esses refugiados estão a cair numa ratoeira de pobreza, sem acesso a educação, saúde ou emprego. Tinham um carro, uma família, um trabalho e tudo isto desapareceu no dia seguinte, da noite para o dia, por causa de uma situação que eles não escolheram. Terão de refazer amigos, contactos para encontrar um emprego, formas de verem os seus diplomas reconhecidos. Hoje em dia, a tecnologia pode ligar-te de volta a essas áreas. Há cursos "online" e plataformas para encontrar empregos "freelance". Acreditamos que, com a tecnologia, podemos encurtar o tempo que um refugiado passa num limbo.

Contou o exemplo de um grupo que participou numa "hackathon" e que num ano aprendeu a programar. Como é que isso aconteceu?

Esse é um óptimo exemplo de como encurtámos o tempo para que eles chegassem a algum lado. Esse grupo de refugiados veio à nossa primeira "hackathon" em Paris, em 2016. Não sabiam programar, mas foram aconselhados por uma ONG a participar no evento. Eles vieram, estavam curiosos e aprenderam durante o fim-de-semana que se souberes programar arranjas emprego rapidamente, porque há procura no mercado de trabalho. Eles são espertos e na segunda-feira seguinte estavam a inscrever-se em aulas de programação.

Passado um ano, fizemos uma nova "hackathon" em Paris e aqueles mesmos rapazes vieram e disseram: "estamos aqui para ganhar". Eu disse-lhes: "Certo, adoro a vossa motivação, mas vão precisar de gente com conhecimentos tecnológicos na vossa equipa". E eles responderam: "Bem, nós agora temos conhecimentos tecnológicos. Aprendemos a programar, por isso podemos fazê-lo". E eles ganharam, com uma plataforma de informação para refugiados.

Em que consistia?

Não é uma ideia revolucionária, mas os refugiados não querem tecnologia de ponta para resolver os seus problemas, querem algo que funcione. E era isso que eles tinham construído - um site que não tinha muito texto, mas sobretudo pictogramas e fotografias, que pudesse ser útil a pessoas iletradas e que chegam a um sítio novo. E eles tinham um bom plano de marketing. São refugiados que falam línguas diferentes, por isso sabiam o que fazer para espalhar a palavra e conseguir que as pessoas confiassem na sua plataforma.

Aqueles tipos tinham qualquer coisa. Ganharam e agora têm um espaço em Paris, de graça, durante três meses, para construir a plataforma deles, financiada pelo PayPal, que está atenta ao modelo de negócio deles e às características técnicas do projecto. Partilham o espaço com alguns dos melhores engenheiros de inteligência artificial franceses. Não teriam conseguido essa proximidade sem o que nós construímos - a "hackathon" e o modelo de incubação, as parcerias e as empresas que nos patrocinam -, mas mais importante é que foram eles próprios que o fizeram.

Quantos são os elementos dessa equipa?

São sete, foi a maior equipa que ganhou até hoje. Vêm de vários sítios de África, como o Congo ou a Nigéria. É esse o nosso objectivo: capacitá-los. Não dizemos que vamos resolver a crise política. Estamos aqui para ser uma ferramenta. E não dizemos que o que fazemos vai ajudar todos os refugiados. Precisamos da UNICEF, do ACNUR e todas as ONG. Não estamos a tentar substituí-las, estamos a tentar ser um braço tecnológico delas. Tentamos acrescentar e contribuir.

Tenho orgulho em dizer que, depois de um ano, 70% das pessoas que venceram "hackathons" continuam os seus projectos. Nem todos dão lucro - a maioria não dá -, porque estamos a falar de refugiados e é muito difícil, por agora, fazer dinheiro neste campo, porque eles ainda têm dificuldade em arranjar empregos e em financiar-se.

Quantas pessoas trabalham na Techfugees?

Temos um núcleo que procura estruturar o crescimento e definir as orientações e princípios da nossa organização. Somos 14 na nossa sede, todos voluntários, menos eu. Estamos sediados entre Londres, Paris, Berlim, Amã e a rede mais vasta de embaixadores tem cerca de 80 pessoas. Todos voluntários.

E como se financia tudo isso?

Estamos a tentar obter dinheiro de empresas tecnológicas, para começar a pagar salários e termos funcionários a tempo inteiro, para podermos profissionalizar a equipa e tornar esta iniciativa sustentável. Se formos profissionais podemos pedir dinheiro pelos serviços que prestamos e podemos ter um modelo de negócio. Isso não está longe, mas precisávamos de testar a ideia primeiro. Precisamos de mais empresas que se associem a nós.

Como vê a evolução da resposta à crise migratória na Europa?

As pessoas ficaram comovidas em 2015 com o tema dos refugiados. Fixe. Eu sabia que não iria durar e não durou. Mas os governos agora sabem que não vai parar. Temos de saber lidar com a situação e teremos de lidar com as próximas vagas de migrantes, porque vão repetir-se.

Se um em cada dois refugiados neste planeta tem menos de 18 anos, se não lhes dermos acesso a educação, se os deixarmos em campos ou à mercê do Estado Islâmico e dos traficantes, vai correr mal. Não vão ser adultos funcionais, facilmente serão pagos para fazer coisas que não fariam noutras circunstâncias. Vi isto no terreno, miúdos a serem pagos para se prostituírem. Nem falemos da situação de todos aqueles rapazes afegãos, na Grécia, a deambular em parques.

Estamos a criar uma geração de criminosos se continuarmos por este caminho. E os governos sabem disto. Por isso é que se está a investir tanto dinheiro para que voltem a ter educação. E podemos usar a tecnologia para alargar este acesso à educação, que pode ser obtida "online", podemos dar-lhes certificados para que possam depois regressar à universidade.

Precisamos de equipar as nossas democracias. Precisamos de nos preparar para o futuro e a tecnologia, enquanto ferramenta, pode ser muito poderosa. Se não a usarmos, os traficantes vão usá-la. Já estão a usá-la. A minha geração vai ter de lidar com isto. Não criámos esta crise, isso foi há muitos anos, mas vamos ter de lidar com isto. Por isso não vou esperar que a geração anterior me diga o que devo fazer ou como devo esperar que eles me protejam.

Comentários
Tem 1500 caracteres disponíveis
Todos os campos são de preenchimento obrigatório.

Termos e Condições Todos os comentários são mediados, pelo que a sua publicação pode demorar algum tempo. Os comentários enviados devem cumprir os critérios de publicação estabelecidos pela direcção de Informação da Renascença: não violar os princípios fundamentais dos Direitos do Homem; não ofender o bom nome de terceiros; não conter acusações sobre a vida privada de terceiros; não conter linguagem imprópria. Os comentários que desrespeitarem estes pontos não serão publicados.

Destaques V+