22 jun, 2017 - 01:45 • João Carlos Malta (texto) Joana Bourgard (fotografia)
Rui está agora a servir almoços. Depois de todo o caos, de todos os prejuízos, solta que "já não era sem tempo". A vida tem de regressar ao normal. Seja lá isso o que for e sem saber se isso é possível. Em Vila Facaia, Pedrógão Grande, perderam-se coisas a mais: vidas, casas, terrenos, animais. Uma lista infindável de dores.
A aflição de sábado ainda a sente na pele. Quando se lhe pede para gravar a conversa, Rui diz que não é bom a dar entrevistas. O bombeiro que morreu em Castanheira de Pêra, Gonçalo Correia, era seu parente. Sente que não é tempo de dar a cara. Mas há quatro dias teve de dar tudo.
Pouco depois de o fogo começar, a luz foi-se. A água desapareceu, a seguir. Nesse momento, entrou em cena o mítico desenrascanso português. Rui tem um café/restaurante. Tinha as traseiras do edifício em perigo, onde o fogo andava a serpentear.
No armazém, estavam guardadas paletes e paletes de bebidas. Com a ajuda de duas mulheres pegaram em cervejas, depois em coca-colas, em sumos, em águas. Tudo o que veio a mão. E deitaram para baldes.
Um a um atirou-os às chamas. Foi o que valeu. "No dia a seguir enchi dois contentores de garrafas", lembra.
Por todo o lado, as histórias de querer fazer frente ao incêndio e não poder multiplicam-se à velocidade de cada conversa. Um popular liberta a raiva: "E depois não querem que nos sintamos abandonados e que as pessoas venham viver para o interior. Tiram-nos tudo."
Na praça da igreja, com uma vizinha ao lado, um homem com mais de 60 anos conta a sua história de sobrevivência e a da morte de 15 cabeças de gado. Sem água, sem luz, foi o fim do mundo.
"Não dá para explicar. As ovelhas morreram carbonizadas. Não há apoio nenhum, cada um que se desenrascasse". A conversa termina porque ele começa a chorar. Não há mais nada a dizer.
Uns metros à frente, o presidente da Junta de Vila Facaia, José Henriques, ainda ouve das boas de uma mulher que ali passa. "Só o estou a ver agora. Nem presidente da Junta, nem bombeiros, nem GNR. Ninguém", atira a senhora. "Ó dona Céu não diga isso. Não diga isso", defende-se o autarca.
Recompõe-se para a entrevista e ameniza. "As pessoas têm destas coisas."
Fernando Henriques acredita que no sábado quantos bombeiros ali fossem, quantos lá ficavam. "Mas depois disso, devia haver alguém para nos socorrer", adianta.
Mas porque é que isso não aconteceu? "Já perguntei porquê, mas não me deram respostas, há-de se apurar mais tarde", promete.
A falha do abastecimento de água foi motivada pela orgânica do sistema. São motores que bombeiam a água e que sem energia não funcionam. Mas não deveria haver um sistema alternativo para quando há cortes de electricidade? "Foi tudo tão rápido, foi fora do comum. Só visto… As pessoas desenrascaram-se com o que tinham", conclui.
E foi mesmo assim, Deonilde Feiteira, do alto dos seus 85 anos, foi mulher para sozinha fazer frente ao maior fogo que já viu. Como mora na parte de baixo da aldeia - e ninguém mais lá estava - contou com uma reserva maior de água. Diz que a ela lhe durou duas horas, depois de as chamas começarem a circundar a casa.
"O fogo batia na parede às bolas, nunca vi nada assim na minha vida. Estava eu e mais eu. Passei o tempo a gritar por Nossa Senhora e Santa Catarina. Lutei duas horas". E se na voz se sente a determinação da impetuosidade do combate, os olhos dão de si e uma lágrima parece preparar-se para cair.
E se as imagens daquele momento não lhe saem da cabeça, os sons ainda lá ecoam. "O meu porco urraaaava, urraaaava. Mas não lhe pude fazer nada", lamenta.
Na mesma praça da Igreja, Joaquim Graça, de 53 anos, sai do estabelecimento de Rui. A cara e o braço não enganam. Ele é mais um dos mais de 150 feridos dos fogos que atingiram a região. O creme gordo para as queimaduras cobre-lhe a face e tem a mão engessada.
Diz que tentou soltar os animais que tinha e quis salvar a casa. Mas havia muitas forças contra: já não bastava a força das chamas ainda se lhe somou a falta de electricidade e de água.
Teve de desistir. Queria salvar a casa mas não pôde. "Deixei arder para me defender, tive de meter água por mim abaixo para poder fugir", recorda.
Era o que tinha de fazer. "Há quem tenha ficado pior", contrabalança.
Mas ele também não está bem. Já estava desempregado antes de tudo isto. A terra ainda lhe dava alguma coisa para comer. Agora acabou, porque o verde foi substituído pelo preto.
Nestes dias tem vivido da ajuda do primeiro apoio às populações vítimas do incêndio que matou 64 pessoas, que lhe dá os alimentos para fazer as refeições. A casa provisória é a de uma cunhada. Não é perfeito, mas é o que é. E o futuro?
"Esperamos que façam alguma coisa por nós, os pobres", remata.