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Crónicas da América
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​ONU debate pela primeira vez os problemas dos oceanos

04 jun, 2017 - 02:38 • José Alberto Lemos, em Nova Iorque

Ocupam três quartos da superfície terrestre, mas nunca foram objecto de discussão nas Nações Unidas. Portugal liderou iniciativa para lançar conferência que começa esta segunda-feira. Ligação histórica ao mar deu-nos preponderância. O embaixador português fez o resto.

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As Nações Unidas dão nesta segunda-feira, dia 5, o pontapé de saída para uma acção organizada e concertada a nível mundial no sentido de proteger os oceanos e Portugal está na linha da frente da iniciativa desde o primeiro momento.

Uma conferência reunirá representantes governamentais de praticamente todos os países do mundo para debater os problemas dos oceanos. Ao contrário do que possa pensar-se, o tema nunca foi objecto de um debate específico na ONU, apesar das preocupações ambientais terem há muitos anos entrado na agenda internacional e apesar de os mares ocuparem três quartos da superfície do planeta.

A preocupação crescente com um ecossistema vital levou um grupo de mais de 20 países a reunir-se com regularidade desde Fevereiro último e a concluir pela necessidade de uma acção de impacto que sensibilize a comunidade internacional para os riscos que se correm. Dessas reuniões saiu a ideia de convocar pela primeira vez uma conferência internacional exclusivamente para debater os problemas dos oceanos que visa funcionar como um apelo à acção.

O documento elaborado e que será, em princípio, aprovado pelos países-membros das Nações Unidas intitula-se “Nosso oceano, nosso futuro: apelo à acção” e foi redigido por Portugal e por Singapura a convite do presidente da Assembleia Geral, Peter Thomson, oriundo das ilhas Fiji e muito sensível ao problema do aquecimento global, já que o seu país pode ser submerso pela subida das águas do mar.

Portugal, juntamente com outros países com uma ligação histórica ao mar como a Holanda, por exemplo, teve assim um papel liderante na iniciativa, através do seu representante permanente na ONU, o embaixador Mendonça e Moura.

O diplomata explicou à Renascença que o documento, que obteve já o consenso para ir a votação na conferência, se integra nos chamados Objectivos de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030 e apela ao envolvimento dos estados, mas também dos privados, para definirem pistas para a protecção dos oceanos e incentivar compromissos voluntários de todos os que se sintam motivados a colaborar na tarefa mundial de salvaguardar os mares.

Compromissos que podem vir de autoridades regionais, locais, associações privadas, grupos de jovens, etc. Todas as acções serão registadas num site que já está aberto para que globalmente se possa saber o que está a fazer-se localmente.

“Em Peniche, por exemplo, está em curso uma acção de limpeza do porto local. Isso deve ser registado no site porque será uma forma de motivar outras pessoas a tomar iniciativas idênticas”, explicou Mendonça e Moura. “Imagine que uma associação de estudantes decide limpar uma praia. Isso deve ser divulgado no site porque todas as acções são relevantes para o nosso objectivo”.

Plásticos e pescas

Uma das maiores preocupações actuais, reflectida no documento a adoptar, respeita ao gigantesco volume de plástico espalhado pelos oceanos. Não só pelo volume, mas também porque os seus efeitos nefastos começaram a penetrar na cadeia alimentar, havendo peixes consumidos pelo homem em que já foram detectados vestígios de plástico. Há por isso um apelo à diminuição do consumo de plástico, sintetizado na fórmula dos três Rs — reduzir, reutilizar, reciclar.

Mas todas as práticas que poluem os mares como despejos de águas não tratadas, limpeza de navios no alto mar, depósito de substâncias perigosas, etc., são objecto do documento.

A pesca é, naturalmente, outra preocupação importante.

Censuram-se as práticas de pesca ilegal e massiva, incentivando a pesca local e artesanal que respeita o ciclo de reposição dos recursos marinhos. O documento advoga o fim dos subsídios à pesca massiva e apela à sua renegociação no âmbito da Organização Mundial do Comércio.

O “apelo à acção” passa ainda pela sensibilização das jovens gerações para o problema, através da introdução de disciplinas dedicadas aos oceanos nos currículos escolares e coloca uma ênfase especial na investigação científica na área. “Por estranho que pareça, esta é uma área em que não sabemos muito. A investigação dos oceanos não está muito avançada. Sabemos mais sobre a lua do que sobre os oceanos”, alerta o embaixador Mendonça e Moura.

Toda a declaração está elaborada em coerência com o Acordo de Paris sobre o Clima, a que faz referência explícita, nomeadamente quando assinala estar “particularmente alarmada com o impacto das alterações climáticas nos oceanos”, incluindo o aumento da temperatura, acidificação, desoxigenação, subida do nível das águas, diminuição dos gelos polares, erosão costeira e temporais.

EUA isolados?

Não deixa de ser irónico que a conferência reúna em Nova Iorque justamente na semana seguinte à saída dos Estados Unidos do acordo do clima. Depois das inúmeras reacções negativas um pouco por todo o mundo à decisão da administração Trump, esta será a primeira oportunidade para a comunidade internacional mostrar a sua oposição colectiva ao caminho agora traçado pelos EUA.

Contudo, a declaração conjunta reuniu o consenso dos países-membros das Nações Unidas, incluindo os EUA, obviamente. Mas os seus termos foram negociados antes de Donald Trump ter anunciado a saída de Paris. Segundo Mendonça e Moura, houve uma “boa atmosfera negocial”, mas os países com quem as conversações foram “mais difíceis” foram os EUA e a Rússia.

A embaixadora americana na ONU, Nikki Haley, tem mantido uma posição ambígua sobre Paris, como ficou patente na audição no Senado para a sua aprovação para o cargo. Resta saber se agora, após a decisão da administração, a posição oficial dos EUA na ONU não se vai alterar também em relação a esta acção em defesa dos oceanos.

Em qualquer caso, a aprovação da declaração não depende apenas de um país e também aqui os EUA se arriscam a ficar isolados. Ou acompanhados apenas pela Rússia, a única grande potência que não criticou a decisão de Trump.

O “apelo à acção”, que por ora é voluntário, é um primeiro passo que aspira a que mais tarde se obtenha consenso para introduzir na Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar instrumentos legais vinculativos para defesa das zonas dos oceanos sem jurisdições nacionais.

O embaixador Mendonça e Moura, um dos negociadores e redactores da declaração — e um dos inspiradores da conferência — espera que as Nações Unidas prossigam neste caminho e que “a cada três, quatro anos, haja uma conferência para fazer o ponto de situação”.

Portugal estará representado na conferência pela ministra do Mar, Ana Paula Vitorino.

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