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​Análise

Casa Branca frenética para mostrar serviço antes dos 100 dias em funções

28 abr, 2017 - 18:12 • José Alberto Lemos, correspondente nos EUA

Com mais desaires do que sucessos, Donald Trump apostou em criar vários factos políticos na semana em que completa cem dias na Casa Branca. A peça-chave agora foi a reforma fiscal, mas o seu destino arrisca-se a ser o mesmo da proposta sobre o sistema de saúde.

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Na semana em que completa 100 dias na Casa Branca, o frenesi apoderou-se da administração Trump. Certamente por ter consciência de que nestes 100 dias — que se assinalam este sábado — foram mais as derrotas do que os sucessos na governação, Donald Trump e os seus assessores decidiram desdobrar-se em iniciativas e anúncios de iniciativas durante toda a semana para dar a ideia de que antes do prazo decorrido muita coisa ainda será resolvida.

Foi assim que saltou subitamente para o domínio público a chamada reforma fiscal, e uma nova versão da lei de saúde que supostamente teria agora os apoios necessários para passar no Congresso e cuja aprovação poderia pôr em risco o funcionamento da administração levando ao fecho dos serviços públicos.

O plano para reformar o sistema fiscal sempre foi considerado por Trump na campanha eleitoral como uma prioridade. Mas havia, claro, outras prioridades e aquela que o Presidente escolheu como a primeira foi a substituição da lei de saúde de Obama (o Obamacare). Uma aposta que falhou estrondosamente já que o projecto apresentado não conseguiu consenso sequer entre os republicanos da Câmara de Representantes.

Quando a lei foi retirada da votação para evitar uma humilhante contagem de votos, os estrategos de Trump começaram de imediato a falar da reforma fiscal como aquilo que resgataria a dinâmica de mudança da administração.

Esse plano surgiu na quarta-feira e a forma como foi divulgado permite alimentar a suspeita de que terá a mesma sorte da lei de saúde. Pelo método e pela substância.

O plano foi apresentado pelo secretário do Tesouro, Steve Mnuchin, e pelo conselheiro económico, Gary Cohn, e é tão genérico que, quando os jornalistas quiseram saber pormenores importantes, a resposta mais frequente foi que eles seriam acertados mais tarde nas negociações com os congressistas.

Mas a concertação com os congressistas começou mal e inquinou o processo à partida. Trump estava a delinear com Paul Ryan, o líder da Câmara de Representantes, um plano susceptível de recolher apoio maioritário entre os parlamentares, mas com o frenesi de apresentar resultados antes dos 100 dias de governo mandou avançar o secretário do Tesouro e o conselheiro económico. Marginalizou assim Ryan, que é o homem mais influente no Congresso, acrescentando mais um escolho na já difícil e tensa relação entre os dois. Para quem necessita dos votos dos congressistas para a aprovação da reforma fiscal, a jogada de antecipação pode vir a revelar-se um tiro que sairá pela culatra do presidente.

Agravamento da dívida

Quanto à substância, o plano apresentado publicamente, embora vago, contém vários ingredientes que vão seguramente suscitar inúmeras objecções aos congressistas, sobretudo aqueles que se dizem fiscalmente mais responsáveis.

O problema principal respeita ao agravamento da dívida que ele implicaria. Ao prometer um corte de impostos tão drástico sem acautelar receitas que o compensem, o plano seria responsável por um aumento da dívida que poderia atingir os 7 triliões de dólares, segundo vários especialistas.

O secretário do Tesouro de Trump disse que o crescimento económico impulsionado pela descida de impostos e pelo fim de muitas deduções fiscais gerariam receitas suficientes para cobrir o défice na cobrança, mas a credibilidade da tese foi posta em causa por muitos economistas e “think tanks" especializados em questões orçamentais e financeiras.

Ora, o agravamento da dívida — ainda por cima de forma astronómica — arrasta consigo vários problemas. Contraria a filosofia de muitos congressistas conservadores para quem o governo deve ser pequeno, as despesas nunca devem ultrapassar as receitas, a dívida deve ser combatida e o défice orçamental deve ser nulo.

Contraria os compromissos de Trump com os eleitores, que na campanha criticou Obama por ter duplicado a dívida do país durante os seus mandatos, prometeu que a anularia nos primeiros anos na Casa Branca e que os seus orçamentos seriam sempre equilibrados de modo que as despesas se ajustassem às receitas.

Contraria, sobretudo, uma norma do Congresso que estipula que não será aprovada nenhuma medida que implique aumento da despesa sem apontar uma qualquer receita que a compense.

Uma norma que abre caminho ao eventual chumbo deste plano fiscal, até porque ela implica a aprovação por maioria qualificada do Senado (60 votos), algo de que os republicanos não dispõem. O voto contra dos democratas parece garantido a avaliar pelas reacções muito negativas ao plano. E alguns republicanos também o criticaram, incidindo sobretudo na questão da falta de soluções para compensar a diminuição das receitas.

Neste aspecto, houve mesmo quem lembrasse aquilo que sucedeu durante a presidência de George W. Bush, que também baixou os impostos alegando que o crescimento da economia induzido por menores impostos geraria as receitas necessárias para compensar o défice. Uma “previsão” que falhou em toda a linha e que ficou conhecida por “economia voodoo”.

O plano apresentado por Trump preconiza descidas de impostos ainda maiores do que as de Bush, sobretudo para as empresas, cujo imposto (equivalente ao IRC português) desceria de 35% para 15%. No plano que estava a ser concertado com Paul Ryan, a descida seria apenas para 20% e tinha previsto o lançamento de uma taxa sobre as importações destinada a compensar a perda de receita. Uma medida que não consta do plano de Trump e a equipa de Ryan já fez saber que a descida do imposto sobre empresas para 15% era insustentável. O próprio Ryan terá sabido do plano pela comunicação social, já que na Casa Branca ninguém o terá informado directamente.

Perante estes dados, parece provável que a chamada reforma fiscal apresentada esta semana pela Casa Branca tenha destino idêntico à do Obamacare - ficar no limbo por falta de apoio no Congresso.

Novo falhanço na saúde

Mas o frenesi desta semana também incluiu o próprio Obamacare. A Casa Branca pressionou fortemente os congressistas republicanos para que até esta sexta-feira votassem uma nova versão da sua lei de saúde que foi retirada em Março último. Rejeitar e substituir o Obamacare continua a ser a promessa e o objectivo de Trump, mas a tarefa tem-se revelado impossível de concretizar, especialmente porque os republicanos não conseguiram até hoje redigir uma proposta de lei que obtenha consenso entre eles próprios.

Um senador moderado tentou esta semana propor uma versão do projecto que deixasse ao critério dos estados a decisão de incluir ou não certas valências nos planos de saúde dos utentes de modo a tornar os prémios mais baratos. No Obamacare, ainda em vigor, os planos de saúde vendidos aos utentes incluem valências obrigatórias como maternidade, idas às urgências, saúde mental, tratamento a toxicodependências, que na nova versão passariam a opcionais de acordo com a decisão de cada estado.

Além disso, as seguradoras seriam autorizadas a subir os preços dos seguros em função do registo clínico do utente. Ou seja, quem padeça de doenças crónicas pagaria bastante mais, o que poderia tornar os seguros proibitivos para muita gente, algo que o Obamacare impedia. Ao transferir para os estados este tipo de decisões, o sistema sairia certamente mais barato ao orçamento federal, mas não evitava que milhões de pessoas que hoje têm seguro de saúde deixassem de o ter.

Esta nova versão, contudo, também não obteve consenso na bancada republicana e na quinta-feira à noite uma reunião de emergência desmarcou a votação que Trump gostaria de ver concretizada esta sexta-feira. “Avançaremos quando tivermos os votos. Não vamos ser constrangidos por prazos artificiais”, afirmou Paul Ryan, numa indirecta à Casa Branca, que tentou aprovar a lei de saúde antes dos 100 dias de presidência para poder apresentá-la como um troféu.

Ameaça de “shutdown”

A pressão da Casa Branca foi tanto mais inconveniente quanto pôs em risco a aprovação no Congresso de uma norma que autoriza que o funcionamento do governo continue sem sobressaltos até Setembro próximo. Com o tecto das despesas atingido, é necessário que os congressistas autorizem a administração a continuar a funcionar, pagando salários e cumprindo todas as suas obrigações financeiras para evitar o fecho do governo (conhecido por “shutdown”). No fundo, trata-se de aprovar uma espécie de orçamento suplementar que permita o normal funcionamento até à entrada do novo ano fiscal em Setembro.

Face à ameaça de revisão do Obamacare, os democratas anunciaram que não viabilizariam o novo orçamento, o que fez pairar o espectro do “shutdown”. Algo que os republicanos fizeram duas vezes durante as administrações Obama.

O “shutdown” significa o fecho de todos os serviços públicos — repartições, museus, parques, etc. — porque impede qualquer despesa federal enquanto não for aprovada pelo Congresso nova autorização para gastos públicos. Nesta sexta-feira estava em cima da mesa a necessidade de aprovar despesa para uma semana, pelo menos, caso não houvesse acordo interpartidário para autorização até Setembro.

A liderança republicana do Congresso preocupou-se por isso mais com esta ameaça do que em precipitar uma aprovação da proposta sobre o sistema de saúde, dando assim um sinal de maior sensatez do que a Casa Branca.

No seu frenesi de mostrar serviço dentro do período simbólico dos primeiros 100 dias, Donald Trump poderia acabar confrontado com um bloqueio orçamental que seria inédito para um presidente há tão pouco tempo em funções.

Seria mais um recorde para o seu já vasto currículo de originalidades.

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