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análise

Republicanos ganham força no Supremo graças a mudança das regras

11 abr, 2017 - 02:11 • José Alberto Lemos, em Nova Iorque

Neil Gorsuch, o novo juiz conservador, foi empossado esta segunda-feira. A culpa não é dele, mas chegou ao Supremo graças a manobras políticas que revelam clima de crispação em Washington. Uma vitória de Trump e dos republicanos que traduz um abuso de poder.

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Donald Trump está na Casa Branca há 80 dias e é impossível prever o que estará reservado para o seu mandato de quatro anos. Mas aconteça que acontecer, esta segunda-feira ficará assinalada com uma das medidas de maior alcance da sua presidência.

A entrada de um novo juiz no Supremo Tribunal dos Estados Unidos é uma das decisões mais determinantes no futuro do país, porque se trata do órgão que por excelência define o ordenamento jurídico, fiscaliza a conformidade das novas leis com a Constituição, e nessa tarefa vai moldando a sociedade de acordo com o evoluir dos tempos. Todos os temas que dividem a sociedade americana — e a que em Portugal chamaríamos fracturantes — passam por lá e lá são decididos em última instância.

E é tanto mais importante quanto, neste caso, o juiz em causa tem apenas 49 anos e entra agora num cargo vitalício onde poderá permanecer mais de três décadas. Neil Gorsuch, que esta segunda-feira tomou posse, vem repor a maioria de cinco juízes nomeados por presidentes republicanos num total de nove. Desde o início de 2016 que o Supremo estava empatado — com quatro juízes conservadores e quatro liberais — quando o conservador Antonin Scalia morreu inesperadamente. Compete ao presidente em exercício escolher os juízes, que depois têm de ser ratificados pelo Senado.

No entanto, quando o Presidente Obama indicou um juiz para substituir Scalia os republicanos que controlavam o Senado decidiram não iniciar sequer o processo de apreciação, argumentando que decorria o ano eleitoral e que competiria ao novo Presidente escolher o futuro juiz. Um argumento inexistente na lei.

Merrick Garland, o juiz então escolhido por Obama, era considerado um moderado, um centrista, que não alinharia sempre com os liberais do Supremo Tribunal, mas mesmo assim a maioria republicana não lhe concedeu sequer o benefício de uma audição. Bloqueou o processo e Garland acabou por nem ser candidato formal à nomeação.

Politicamente a preocupação dos republicanos compreende-se. A escolha de um juiz não conservador iria desequilibrar o Supremo Tribunal a favor dos liberais — pelo menos tendencialmente — acabando com a hegemonia conservadora naquele órgão que dura há décadas. Mas institucionalmente afigurou-se como um claro abuso de poder da maioria, já que faltavam ainda dez meses para as eleições presidenciais e, embora Obama estivesse de saída, tinha toda a legitimidade para colocar o “seu” juiz no Supremo.

A manobra republicana, contudo, resultou em pleno já que a eleição de Trump em Novembro abriu a porta à escolha de um conservador. Neil Gorsuch, o juiz agora empossado, vai manter assim uma hegemonia que se começou a desenhar desde os anos 1980, quando o Presidente Reagan começou a nomear juízes mais conservadores, uma tradição que os dois presidentes republicanos seguintes foram seguindo — Bush pai e Bush filho.

Mas esta não foi a única manobra usada pelos republicanos para garantir a nomeação de Neil Gorsuch. Os democratas, ressabiados pelo facto de não ter sido dada oportunidade ao escolhido por Obama de aceder ao Supremo, decidiram-se por uma política de “olho por olho, dente por dente”. Recusaram por isso qualquer possível apoio a Gorsuch e anunciaram que recorreriam a todos os mecanismos parlamentares para evitar a sua nomeação.

Um desses mecanismos é o chamado “filibuster”, que consiste em tomar a palavra indefinidamente para evitar que a proposta que está em debate seja votada. Com os campos extremados e com uma norma histórica a obrigar a que os juízes do Supremo sejam escolhidos por uma maioria qualificada de 60 votos, os republicanos ficaram em dificuldades para aprovar Gorsuch. A sua maioria é de apenas 52 senadores contra 48 democratas e a meta dos 60 parecia inalcançável.

Daí que tenham decidido acabar com a regra dos 60 votos necessários para aprovar juízes do Supremo, viabilizando a nomeação de Neil Gorsuch com uma maioria simples. Uma decisão bastante polémica, que suscitou críticas dentro da própria bancada republicana — John McCain chamou-lhe idiota e estúpida — mas que viabilizou a escolha do juiz de Trump.

O que a decisão significa é uma alteração das regras em pleno jogo, configurando um abuso de poder da maioria circunstancial num sistema que está formatado para obrigar a consensos e a compromissos. O que os republicanos enterraram nesta decisão de mudança de regras foi a cultura de compromisso em que o sistema político é suposto funcionar.

Não foram, contudo, os primeiros a fazê-lo. Durante o segundo mandato de Obama, num período em que tiveram maioria no Senado, os democratas também anularam a norma da maioria qualificada de 60 votos para nomeações de juízes federais e outros cargos executivos. Mantiveram-na, porém, para os juízes do Supremo, cuja importância e peso no ordenamento jurídico do país é incomparável.

Mas ficou aberto o precedente, naturalmente, e a hostilidade entre os dois partidos agravou-se desde então. Homem conservador, mas reconhecido mesmo pelos adversários políticos como um jurista muito competente, Neil Gorsuch chega assim ao Supremo graças a duas manobras políticas que espelham o clima de radicalização e vingança que grassa em Washington entre a classe política.

A tradição na aprovação dos juizes para o Supremo é a de recolherem inúmeros votos mesmo junto da bancada da oposição ao presidente. Quer os juízes conservadores, quer os liberais, foram em geral aprovados com maiorias superiores a 80 votos, traduzindo o reconhecimento de que um Presidente tem o direito e a legitimidade de escolher um juiz que partilhe a sua visão do mundo. E daí que a avaliação seja feita na base das suas qualidades profissionais, pessoais, éticas, e muito pouco na sua mundivisão.

Foi assim que Ronald Reagan conseguiu aprovar juízes conservadores num Senado dominado por democratas, ou Clinton ou Obama conseguiram aprovar juízes liberais em senados de maioria republicana.

Gorsuch teve a mais pequena maioria de sempre — 54 contra 45. A responsabilidade, porém, não lhe poderá ser imputada, mas sim ao ambiente de crispação, ódio, vingança e radicalização política de Washington, onde a velha cultura do compromisso está esquecida.

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