08 abr, 2017 - 01:34 • José Alberto Lemos, em Nova Iorque
A rota de colisão entre os Estados Unidos e a Rússia iniciada com o ataque americano a uma base aérea na Síria tende a agravar-se à medida que se vão sabendo mais pormenores sobre a utilização de armas químicas na passada terça-feira em Idlib.
O Departamento de Defesa americano anunciou esta sexta-feira que estava a investigar em pormenor o que se passou no dia em que a vila de Khan Sheikoun foi atacada com gás sarin, vitimando mais de 80 pessoas.
Cinco horas após o ataque com armas químicas um avião de fabrico russo largou uma bomba num hospital onde as vítimas estavam a ser tratadas. O objectivo seria eliminar as provas de que tinham sido usadas armas de destruição maciça no local e evitar as repercussões internacionais de tal acto.
O ataque ocorreu após um drone russo ter sobrevoado a área para observar a situação. O avião que atacou o hospital era de fabrico russo, como o são todos os caças da Força Aérea síria. Mas saber quem o tripulava é vital para avaliar até que ponto Moscovo é cúmplice do regime sírio na utilização de armas químicas. Se porventura o avião tiver sido comandado por um piloto russo isso significa que o Kremlin é tão responsável pela atrocidade cometida em Idlib quanto o regime de Assad.
Nesta fase das investigações, o Pentágono olha também atentamente para outro caso. Na base aérea atacada pelos mísseis Tomahawk estava estacionada uma tripulação russa e é pouco provável que desconhecesse os preparativos para o ataque a Idlib que ali decorreram.
Determinar portanto as responsabilidades russas no uso das armas químicas na Síria parece ser o próximo passo de Washington, agora que as hostilidades com Moscovo estão abertas. Aliás, o secretário de Estado americano, Rex Tillerson, já tinha acusado o Kremlin de ser ou cúmplice ou incompetente neste assunto. Cúmplice no caso de saber que os sírios ainda possuíam armas químicas; incompetente no caso de não o saber, porque Moscovo se responsabilizou em 2013 pela recolha do arsenal químico de Assad.
Uma acusação a que a embaixadora americana na ONU, Nikki Haley, juntou uma terceira: os russos podem ter sido enganados pelos sírios na detecção e recolha das armas químicas. Uma outra forma de dizer, no fundo, que foram incompetentes na missão que assumiram.
De qualquer modo, é muito diferente concluir que a Rússia foi apanhada de surpresa pelo uso de armas químicas ou concluir que sabia da sua existência e até teve um papel no seu uso. A investigação do Pentágono, atendendo aos pormenores já divulgados e à sofisticação dos meios de análise envolvidos, parece apontar para a segunda hipótese.
E nesse caso a hostilidade entre Washington e Moscovo provocada pelo raide americano na Síria só poderá agravar-se e entrar numa escalada sem fim à vista. Nesta sexta-feira, para além da retórica a condenar o ataque, o Kremlin suspendeu um protocolo de cooperação militar entre as duas potências que estava em vigor na Síria para evitar colisões entre as forças de ambos os países ali estacionadas. O que deixa em aberto a hipótese de um destes dias, inadvertidamente ou não, militares russos e americanos se confrontarem numa qualquer esquina síria. Para já, os EUA tomaram medidas adicionais para proteger os militares que têm na Síria.
No ataque à base aérea, Washington teve o cuidado de avisar Moscovo previamente para que pusesse os seus homens e equipamento a coberto de danos, mostrando claramente que não deseja qualquer mal-entendido nesta matéria. Os dados oficiais fornecidos pelo Pentágono apontam para a destruição de 20 caças sírios e não referem quaisquer danos colaterais. E a Rússia não se queixou de quaisquer danos, de resto.
Mas a retórica do Kremlin agravou-se durante o dia de sexta-feira. A primeira reacção do porta-voz do Kremlin tinha sido relativamente branda, mas horas mais tarde Vladimir Putin chamou ao ataque uma “agressão” que violava a lei internacional e o embaixador russo na ONU foi muito enfático na forma como criticou a acção americana.
A resposta que teve da embaixadora americana foi proporcional. Nikki Haley disse que o ataque tinha sido justificado e criticou a Rússia por apoiar o regime de Assad, exigindo de Moscovo um comportamento “responsável”. O mais importante, porém, na declaração de Haley foi o ter dito que os EUA “estão preparados para fazer mais, se necessário”, embora não o desejem. A necessidade será determinada pelo eventual uso de armas químicas de novo.
Ficava assim definida a missão americana na Síria: um ataque pontual, meramente táctico, destinado a punir o regime de Assad pelo uso de armas químicas, mas que não visa maior envolvimento na guerra civil em curso no país, nem tão pouco a deposição imediata de Assad, cujo destino depende agora do seu comportamento futuro, nas palavras do secretário de Estado Tillerson.
Uma advertência que confirma que a estratégia americana na Síria não mudou, mas que as circunstâncias no terreno, nomeadamente a aliança entre Moscovo e Damasco, podem vir a determinar alterações. Por ora, mantém-se a ambiguidade em relação à deposição de Assad, um criminoso de guerra que Washington espera convencer Moscovo a deixar cair.
Uma missão que agora parece ainda mais impossível do que antes, já que se há um dano colateral evidente no raide de sexta-feira é justamente a relação entre a Casa Branca de Trump e o Kremlin de Putin.