07 abr, 2017 - 10:50 • José Alberto Lemos, em Nova Iorque
Já tinha acontecido com George W. Bush. Aconteceu agora com Donald Trump. Os dois presidentes chegaram à Casa Branca com um discurso mais ou menos isolacionista, concentrado sobretudo nas questões internas que afecta(va)m o país, decididos a manter os Estados Unidos o mais longe possível dos problemas do mundo.
George W. Bush teve nove meses de presidência tranquila antes de lhe desabar o mundo em cima sob a forma do 11 de Setembro. Donald Trump teve 11 semanas de declarações a desvalorizar o conflito na Síria e a defender o não-envolvimento americano no atoleiro em que se transformou o país nos últimos seis anos.
Até que na terça-feira viu as imagens do massacre cometido pelo regime de Assad com armas químicas na região de Idlib e ficou “muito impressionado”, segundo altos funcionários da administração. E, como se sabe, Trump nunca deixa de reagir quando algo o impressiona ou irrita. Geralmente, reage através do twitter, mas desta vez essa era uma “arma” pouco eficaz.
Decidiu por isso que era necessário dar um sinal forte ao regime de Assad e sobretudo à Rússia que o sustenta. Foi uma reacção emocional que contraria tudo aquilo que tinha dito nos últimos anos.
Contraria os apelos a Obama para que não interviesse na Síria em 2013 quando Assad usou armas químicas matando 1400 pessoas e cruzando a linha vermelha definida pelo então presidente. Contraria o que afirmou várias vezes na campanha eleitoral no sentido de deixar que o regime e o ISIS (Estado Islâmico) se fossem aniquilando mutuamente enquanto os EUA se mantinham fora do conflito. Contraria aquilo que o seu secretário de Estado disse na semana passada, segundo o qual compete ao povo sírio decidir quem o governará após a guerra civil. Contraria aquilo que o seu porta-voz e a embaixadora na ONU disseram ainda esta semana ao reconhecer que o afastamento de Assad não era uma prioridade.
Mas, como sabemos, a vida política de Trump é pródiga em contradições. E em reacções emocionais como a que tomou quanto à Síria, acusando Assad de ultrapassar todos os limites. “Quem mata crianças, bebés inocentes, com gás químico tão letal, cruza todas as linhas. Quem faz isto vai além da linha vermelha, vai além de muitas linhas”, acusou, reconhecendo que a sua atitude em relação a Assad e à Síria tinha “mudado drasticamente”.
O ataque desencadeado na madrugada desta sexta-feira não significa uma mudança de estratégia em relação ao conflito. Tudo indica que os EUA continuam indisponíveis para se envolver militarmente na guerra síria. O que Trump quis mostrar às forças em presença no conflito é que a sua indiferença ao sofrimento humano tem limites e que ainda que pareça distante da guerra civil será sempre um protagonista a ter em conta numa eventual solução para o país e para a região.
É uma atitude que lhe está a valer elogios de todos os sectores políticos americanos e que será certamente bem acolhida pela comunidade internacional. Assad está isolado internacionalmente. À excepção de russos, iranianos e de sectores xiitas como o Hezbollah, ninguém defende o tirano de Damasco responsável por seis anos de guerra civil, meio milhão de mortos e seis milhões de refugiados.
Nos EUA, os conservadores que criticaram Obama por omissão no conflito sírio, exultam agora com o ataque, porque vêem nele o fim do isolacionismo de Trump e sobretudo o fim do “love affair” com Putin. Expectativas que partilham com os liberais, de resto.
O problema é que, ao não corresponder a nenhuma estratégia concreta em relação ao conflito sírio, este ataque arrisca-se a deixar tudo na mesma no terreno. E nesse caso só acentuará a sensação generalizada de impotência para resolver o conflito. O presidente americano pode ter traçado uma linha vermelha para si próprio — a de que só intervirá quando e se forem utilizadas armas de destruição maciça.
Ironicamente a mesma linha que Obama tinha traçado e que Trump criticou como compromisso “intervencionista”. Mais uma contradição! Que arrasta ainda uma outra. Quando apelou a Obama para não intervir na sequência do ataque químico de 2013, salientou que o presidente precisava de autorização do Congresso para tal e não podia agir autonomamente. Mas agora, Trump lançou o ataque na Síria sem pedir autorização ao Congresso.
Mas aconteça o que acontecer no terreno, há um factor que este ataque mudou substancialmente — a relação entre Washington e Moscovo. Esta é a maior consequência política da decisão de Trump. A amizade com Moscovo afigura-se agora inalcançável, apesar das cautelas americanas para não provocar danos colaterais nas forças russas que estão no terreno na Síria. Desde avisar antecipadamente o Kremlin do ataque, até orientar os mísseis Tomahawk de modo a não atingir armamento russo, Washington tomou todos cuidados para que o raide não pudesse ser interpretado como uma provocação à Rússia ou até o início de um confronto. Mas a retórica política que o precedeu e que lhe sucedeu deixou o Kremlin no banco do réus.
Algumas horas antes do ataque, o secretário de Estado, Rex Tillerson, aconselhava a Rússia a reavaliar cuidadosamente a sua relação com Assad e depois do raide lançou uma acusação muito concreta. Recordou que, em 2013, a Rússia tinha evitado uma intervenção americana porque se disponibilizou para recolher todas as armas químicas que o regime sírio possuía. Foi esse compromisso de eliminar as armas letais de Assad que fez recuar Obama na intenção de retaliar na sequência do primeiro massacre.
Agora, perante as provas de que afinal Assad ainda tinha armas químicas, Tillerson acusou Moscovo de ter sido ou cúmplice do ditador sírio ou incompetente na fiscalização do acordo. Informações ainda não confirmadas apontavam mais para a primeira hipótese, já que a base aérea que foi bombardeada e onde estariam armazenados os “stocks” de armas químicas usadas na terça-feira em Idlib contaria com peritos russos entre o pessoal militar.
Considerar o Kremlin cúmplice de um tirano que acaba de cometer um crime de guerra flagrante com armas proibidas pelas convenções internacionais não é acusação ligeira. Ainda para mais feita por alguém que na próxima semana estará em Moscovo para encontros com o seu homólogo e com o próprio Putin, que em tempos o condecorou com a medalha da amizade do povo russo.
A reacção do Kremlin, curiosamente, foi branda. O porta-voz de Putin disse que a acção militar americana tinha sido um “golpe significativo” nas relações entre os dois países, que “já estão em mau estado”. E acrescentou que ela em nada contribui para combater o terrorismo, criando antes “obstáculos sérios à formação de uma coligação internacional para lutar contra e resistir a esse mal universal”.
Era em nome da luta contra o terrorismo que o Kremlin contava com a condescendência americana para com Assad. Enquanto prometia combater o ISIS (Estado Islâmico) e outros grupos terroristas no terreno, Moscovo consolidava o poder de Assad e ia criando a ideia de que ele era a solução incontornável para o pós-guerra.
Uma ideia que ia fazendo caminho em Washington, como se viu, antes de terça-feira. Mas o massacre de Idlib “mudou drasticamente” a posição de Trump quanto ao conflito. A Casa Branca não é agora mais a “idiota útil” do Kremlin em relação a Assad.
A rota de colisão entre as duas capitais está traçada. Pelo menos em relação à Síria. E pelo menos até à próxima mudança drástica nas emoções de Donald Trump.