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Trump sofre primeira grande derrota às mãos dos republicanos, divididos quanto ao Obamacare

24 mar, 2017 - 22:57 • José Alberto Lemos, em Nova Iorque

Era a promessa mais repetida pelo presidente. Rejeitar e substituir o Obamacare. Mas a sua proposta não colheu junto dos republicanos, que lhe negaram uma maioria. O Obamacare sobrevive, a capacidade política republicana é duvidoso. Foi uma semana “horribilis” para Trump.

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A primeira tentativa para rejeitar e substituir o Obamacare, o sistema de saúde criado por Obama, falhou estrondosamente esta sexta-feira na Câmara de Representantes.

No primeiro confronto entre Donald Trump e a bancada republicana o presidente foi derrotado em toda a linha não garantindo os votos necessários para fazer passar a sua proposta de lei. Por isso, poucos minutos antes da votação ocorrer decidiu retirar a proposta e evitar um escrutínio humilhante.

Cerca de uma hora antes da votação, o speaker da Câmara de Representantes foi à Casa Branca dizer a Trump que não havia votos suficientes e os dois decidiram retirar a proposta.

Obcecada em substituir um sistema de saúde que diz estar à beira do colapso, a Casa Branca fez deste assunto uma das suas prioridades, mas a complexidade do problema aconselhava maior prudência e sensatez. Exactamente aquilo que faltou a Trump e aos seus aliados no Congresso.

Há apenas dois meses em funções, esta administração tinha muito tempo para debater a questão, analisar os pontos fracos e fortes do actual sistema, preparar uma alternativa consistente e construir consensos que viabilizassem a nova proposta de lei. Afinal de contas, acabou de entrar em funções e tem quase quatro anos pela frente na Casa Branca.

Mas em vez disso optou por precipitar o processo e lançou uma proposta que não agradou a ninguém, apesar de ter sido apresentada há algumas semanas como a solução milagrosa para substituir o Obamacare. No entanto, à medida que os dias foram passando foi-se percebendo que o diploma diminuiria drasticamente a cobertura dos cidadãos através de seguros de saúde, que aumentaria a prazo os preços dos seguros e que pouparia dinheiro ao Tesouro à custa da degradação da prestação de serviços.

O Gabinete de Orçamento do Congresso (GOC) uma entidade independente, analisou a proposta e concluiu que, a ser aplicada, excluiria 24 milhões de pessoas da cobertura de saúde ao fim de dez anos, 14 milhões das quais já no próximo ano.

A bancada republicana ficou profundamente dividida. Enquanto os mais conservadores — agregados no chamado Freedom Caucus, um sucedâneo do Tea Party — acharam a proposta um Obamacare em versão ligeira, acusando-a de manter a lógica estatista do sistema anterior e de ser despesista ao manter muitos dos serviços já existentes, os moderados entraram em pânico com as consequências que ela teria para os seus eleitores, nomeadamente com a eventual perda de seguro de saúde para muitos milhões.

O confronto foi inevitável e Paul Ryan, o líder da bancada republicana, desdobrou-se em negociações para tentar atingir um consenso. Mas não só ele. O próprio presidente falou com várias facções da bancada e o vice-presidente também. Pouco a pouco a proposta foi sofrendo alterações para tentar agradar a gregos e troianos e a segunda versão ficou no pior de dois mundos. Segundo o GOC, cerca de 24 milhões de pessoas perderiam à mesma o seguro de saúde e a poupança orçamental seria cerca de metade do previsto antes.

Mas nada deteve a obstinação da Casa Branca e da liderança do Congresso. Na quinta-feira, Trump decidiu dar as negociações por findas e lançar um ultimato: ou os republicanos aprovavam a proposta ou o Obamacare ficaria em vigor. A votação chegou a estar prevista para quinta à noite, mas foi adiada para sexta à tarde. A confusão reinava entre o grupo parlamentar e na sexta-feira de manhã as divisões tinham-se acentuado. Estava claro que os republicanos não conseguiriam reunir os 216 votos necessários para aprovar a proposta de lei.

À última hora, Paul Ryan decide ir à Casa Branca e propor a Trump que se evite a humilhação dos votos. É isso que decidem porque ao fazê-lo ainda ficariam com margem de manobra para dizer que estiveram perto do sucesso. Algo que ninguém agora consegue garantir porque não houve contagem, mas as estimativas feitas pelos media americanos durante o dia apontavam para uma pesada derrota numérica.

Com ou sem votação, a derrota foi estrondosa por várias razões. Primeiro, porque Trump fez da rejeição e substituição do Obamacare um dos pontos centrais da sua campanha e do seu programa. Ao considerá-lo um desastre e prognosticar que estava à beira do colapso, transformou-o no núcleo central da sua estratégia de mudança da América.

Segundo, porque as maiorias conquistadas pelos republicanos quer na Câmara de Representantes, quer no Senado, nos últimos anos forjaram-se em boa parte graças ao criticismo do Obamacare. A própria Casa Branca foi conquistada em parte à custa desse discurso.

Terceiro, porque Trump afirma-se como o campeão dos acordos, das negociações, o homem que consegue sempre levar a sua avante graças à alegada capacidade para convencer as contrapartes e a primeira vez que teve pela frente uma negociação a sério no terreno político falhou redondamente.

Quarto, porque os republicanos andaram sete anos a vilipendiar o Obamacare na praça pública, mas nesse tempo todo não conseguiram elaborar uma proposta alternativa consistente e consensual para o substituir, uma exibição de incompetência dificilmente defensável.

Este mesmo fracasso veio a reconhecer Paul Ryan, quando após a retirada da proposta, admitiu que tinha sido perdida para a sua bancada uma “oportunidade incrível” de substituir o Obamacare, que estava “desapontado” e que era muito diferente estar na oposição e estar no governo. “Faltou consenso”, disse, porque não conseguiram os 216 votos necessários. “O Obamacare vai manter-se como a lei em vigor”, proclamou, embaraçado com aquilo que há-de dizer aos seus eleitores para justificar tamanho falhanço. De facto, os republicanos e a Casa Branca não tinham (nem têm) plano B para este caso.

Mas se o “speaker” da Câmara de Representantes admitiu e lamentou a derrota, já o mesmo não pode dizer-se de Donald Trump. Pouco tempo depois, o presidente era igual a si mesmo. Não admitiu a derrota e até disse que os maiores perdedores tinham sido Nancy Pelosi e Chuck Schumer, respectivamente líder dos democratas na Câmara e no Senado. E porquê? Porque os democratas não se juntaram aos republicanos para votar a proposta!

Ora, os democratas sempre se opuseram a esta proposta e proclamaram a sua fidelidade ao Obamacare, e naturalmente os seus votos nunca estiveram em jogo neste caso. O que falhou foram os votos republicanos, que são a maioria e ao falharem decretaram a maior derrota de Trump e do partido nesta legislatura.

Mas Trump disse mais. Admitiu que este desfecho até possa ter sido positivo porque o Obamacare vai “implodir este ano” e depois será aprovada uma nova lei com o apoio democrata.

“Acho que é isso que vai suceder. Vamos fazer uma grande lei com os democratas quando esta implodir”. Nesta afirmação pode estar uma insinuação sibilina para a facção conservadora dos republicanos, que se mostrou mais intransigente na negociação.

Ou seja, Trump estará eventualmente a pensar garantir o apoio dos moderados republicanos e de alguns democratas para elaborar uma proposta alternativa, mais consensual, que substitua o Obamacare sem grandes danos.

Uma jogada a prazo que é duvidoso que surta efeito porque os democratas não partilham da mesma filosofia dos republicanos em matéria de prestação de cuidados de saúde.

E, por ora, é a sua lei que prevalecerá, supostamente ainda por muitos anos, dada a divisão e a incapacidade republicana para construir uma alternativa. Uma lei que, com todos os defeitos que possa ter, garantiu cobertura de seguro de saúde para mais 23 milhões de americanos em sete anos.

Não foi a primeira, mas foi mais uma semana “horribilis” para Donald Trump, que começou com o desmentido oficial pelos directores do FBI e da NSA de que tivesse havido escutas na Trump Tower e acabou com esta derrota às mãos dos membros do seu próprio partido. E ainda só lá vão 64 dias em funções.

Comentários
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  • Trompeteiro
    27 mar, 2017 portugal 22:32
    ... e que era muito diferente estar na oposição e estar no governo. “Faltou consenso” - Paul Ryan, speaker GOPiano!
  • F
    26 mar, 2017 Lisboa 15:24
    Uma das coisas que mais me surpreende é constatar que existe ainda quem louve este mentiroso compulsivo. Ao fim de 6 meses de presidência, terei o maior interesse em ver qual o destino do sr. Trump. Não me parece que venha a ser risonho.

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