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​Trump quer cortar metade da contribuição americana para a ONU

16 mar, 2017 - 09:16 • José Alberto Lemos, em Nova Iorque

Para financiar aumentos na Defesa e Segurança Interna, o Presidente reduz na diplomacia, no ambiente, na ciência, nas artes e no apoio aos pobres. A ONU será uma vítima colateral. Uma dor de cabeça para António Guterres.

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O primeiro orçamento federal da administração Trump prevê cortes drásticos no financiamento americano às Nações Unidas, que poderão atingir os 50%, mas também no ambiente, nas artes, na ciência e nos programas de assistência aos pobres.

O esboço do primeiro orçamento da responsabilidade da nova administração é apresentado esta quinta-feira e as linhas-mestras do seu conteúdo já vieram a público, apontando para grandes cortes no Departamento de Estado, donde saem quase todas as verbas para o financiamento da ONU.

Na verdade, o Departamento de Estado e a Agência de Protecção do Ambiente são os dois organismos que sofrem os maiores cortes orçamentais — 29 e 30%, respectivamente. Uma opção que não surpreende e que reflecte a agenda política de Donald Trump, um unilateralista que despreza as Nações Unidas e um anti-ambientalista que duvida mesmo da responsabilidade humana no aquecimento global.

Recentemente, Trump disse que a ONU era “um clube para as pessoas se encontrarem, conversarem e divertirem. Uma tristeza!”. Em coerência, a Casa Branca deu instruções ao Departamento de Estado para cortar cerca de metade do financiamento habitual, fazendo da ONU uma das maiores “vítimas” da sua nova política.

Os Estados Unidos são responsáveis por mais de 22% do financiamento da organização, uma percentagem proporcional à sua riqueza nacional. Estes 22% significam cerca de 10 mil milhões de dólares que ajudam a pagar despesas de funcionamento, algumas operações de paz, acções de assistência humanitária e departamentos autónomos como a Agência Internacional para a Energia Atómica ou a Organização Mundial de Saúde.

China salva Guterres?

Um corte significativo neste financiamento poderá pôr em causa operações de paz e acções humanitárias, mais do que o funcionamento do aparelho. Um cenário susceptível de provocar muitas dores de cabeça a António Guterres, eleito secretário-geral em Outubro passado numa conjuntura favorável, não só porque a administração Obama valorizava o papel da ONU, mas também porque as previsões apontavam para a eleição de Hillary Clinton como futura inquilina da Casa Branca.

A concretizarem-se os cortes previstos por parte dos EUA, a alternativa mais plausível para suprir essa redução de fundos será a China. Sem dificuldades financeiras e empenhada em assumir um papel crescente na cena internacional, a China poderá estar disposta a preencher o vazio aberto pelos EUA com o sub-financiamento da ONU.

Interrogado sobre esta hipótese pela Renascença, um diplomata europeu a exercer funções nas Nações Unidas admitiu claramente que esse é o cenário mais provável. Em política internacional, tal como na nacional, não há vazios. Quando eles acontecem alguém surge para os preencher.

As tensões entre os EUA e a ONU não são inéditas. Algumas administrações republicanas — nomeadamente as de Ronald Reagan e de George W. Bush — criticaram severamente algumas agências das Nações Unidas pelo tipo de políticas desenvolvidas ou por terem uma atitude sistematicamente anti-Israel. Na mira estiveram a Comissão de Direitos Humanos e a UNESCO, por exemplo. E ambos os presidentes suspenderam as contribuições financeiras para algumas agências.

Mas a hipótese de reduzir para quase metade a contribuição financeira nunca sucedeu até hoje. A nova embaixadora americana na ONU, Nikki Alley, disse na audição do Senado que a escrutinou para o cargo, que ninguém lhe tinha falado em cortar nas verbas para ajuda internacional, mas adiantou que era preciso ser mais selectivo nas missões a concretizar. Deu a entender que os EUA querem ser mais influentes na ONU do que são hoje, tentando que a agenda da organização coincida com os seus interesses. Um objectivo que pode implicar mais dinheiro, não menos.

A USAID, a agência que gere operações de ajuda internacional em situações de catástrofe, que distribui alimentos, medicamentos e pessoal médico em auxílio a populações em risco, ou que financia projectos de desenvolvimento local em países pobres está na lista dos cortes previstos. E trata-se de uma agência que faz mais pela imagem dos EUA no mundo do que milhares de discursos políticos.

Dois influentes senadores republicanos, Mitch McConnell e Lindsey Graham, já manifestaram a sua oposição ao projecto orçamental, vaticinando que ele não será aprovado no Congresso.

Outra área em que a ONU será afectada pelos cortes é a do ambiente. Os dinheiros previstos para o Fundo Verde do Clima, destinado a aplicar o Acordo do Paris aprovado no ano passado, serão reduzidos. E internamente, o orçamento também corta em fundos para a investigação oceânica e terrestre da NASA e em vários programas para a eficiência energética, em que a administração Obama apostou fortemente.

Recorde-se que o orçamento do Departamento de Estado, que engloba quase tudo o que ficou dito, representa apenas um por cento do total do orçamento federal.

Pagar o muro e acabar com artes

As duas únicas áreas em que Trump aumenta o orçamento são a Defesa e a Segurança Interna, 10% e 7%, respectivamente. Na Defesa, já tinha sido anunciado um aumento de 54 mil milhões de dólares, mas o projecto agora apresentado é parco em pormenores. À excepção do novo caça F-35 em desenvolvimento, tudo o resto é vago.

Quanto à Segurança Interna, o aumento destina-se a financiar o muro na fronteira sul, apesar de Trump ter dito que o México o pagaria, e a contratar mais juízes, agentes e guardas fronteiriços.

Para financiar os aumentos nestas duas áreas e manter o défice federal sob controlo, Trump tem de cortar naquelas que considera menos importantes ou mesmo dispensáveis. Que são, para além da política externa e do ambiente, que já vimos, a ciência, a cultura e os programas sociais.

E aqui as propostas são mais radicais ainda. Não são simples cortes, mas o fim de qualquer financiamento para a agência que apoia as artes (National Endowment for the Arts), a agência que apoia a cultura e a investigação na área das ciências sociais e humanas, museus, bibliotecas, etc, (National Endowment for the Humanities) e a agência responsável pela National Public Radio (NPR) e pelo canal de televisão pública (PBS), a Corporation for Public Broadcasting.

A concretizar-se, esta ausência de financiamento público significará o encerramento de dois dos media mais prestigiados e isentos do pais, além do encerramento de centenas de museus, bibliotecas, institutos, e o colapso de boa parte da indústria e da formação cultural americanas.

Também na área dos programas sociais há cortes pela raiz. Um programa de três mil milhões que ajuda os pobres a aquecer as casas no Inverno será eliminado, tal como outro no mesmo montante para habitação social e ajuda a pessoas sem casa.

Algo surpreendentes são as contradições com as promessas feitas na campanha eleitoral e já depois de eleito. Apesar de garantir que quer renovar as infraestruturas do país, Trump não destinou quaisquer fundos para tal. Prevê até cortar 500 milhões de dólares num programa de recuperação de estradas do Departamento de Transportes, cortar o financiamento para a longa distância do comboio que melhor funciona na América (o Amtrak) e privatizar a Autoridade Federal de Aviação (FAA).

Drenar o pântano

Se nalguns pontos este esboço orçamental espelha o que o presidente pensa e se propõe fazer no país, noutros torna-se incompreensível. O reflexo, talvez, da própria personalidade contraditória de Trump.

Uma consequência inevitável da sua eventual aplicação será a eliminação de muitos milhares de empregos no aparelho de estado, um objectivo não declarado, mas subentendido, Aliás, Mick Mulvaney, director do Gabinete de Gestão e Orçamento, nem sequer o escondeu, dizendo aos jornalistas que “não se pode drenar o pântano deixando lá as pessoas”, numa alusão à promessa eleitoral de Trump de acabar com o “pântano” do "establishment" político de Washington.

Contudo, esse mesmo "establishment" está em condições de reagir e parece que se prepara para o fazer. O orçamento tem de ser aprovado no Congresso e muitos dos cortes programados desagradam profundamente a muitos congressistas republicanos porque afectam os seus círculos eleitorais e podem pôr em xeque a sua reeleição em 2018.

Tal como está a acontecer com o plano de saúde, prevê-se por isso uma negociação muito difícil para a Casa Branca junto da bancada republicana. Para início de conversa, o senador da Florida, Marco Rubio, fez questão de explicar publicamente que “o orçamento da administração não vai ser o orçamento. Nós fazemos o orçamento aqui. A administração faz recomendações, mas o Congresso faz os orçamentos”.

Comentários
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  • Manuel
    16 mar, 2017 Lisboa 10:32
    Não há problema, Guterres vai lançar a ONU num pântano como fez com Portugal
  • António Costa
    16 mar, 2017 Cacém 10:25
    Estas opções politicas, com o investimento "em força" na "Defesa", fazem lembrar as opções politicas da Coreia do Norte.

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