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Contar a dançar a história de uma jovem refugiada síria

13 mar, 2017 - 13:59 • Ângela Roque , foto: Filipe Condado

Nisreen é o nome de uma estudante síria que uma médica portuguesa conheceu quando esteve em missão na Grécia. Nisreen deu nome a um espectáculo de dança contemporânea.

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Ângela Roque entrevista Rita Coelho sobre o bailado "Nisreen" - 13/3/2017

Nisreen existe mesmo. É o nome real de uma jovem refugiada síria que fugiu da guerra com um irmão menor, deixando o resto da família para trás.

Rita Coelho, médica e voluntária da Plataforma de Apoio aos Refugiados, conheceu-a há um ano quando esteve em missão na ilha de Lesbos, na Grécia. No regresso quis dar voz a esta história de vida, que a marcou. Juntou a sua vontade à de uma amiga, Carolina Themudo, enfermeira e bailarina pela Escola Superior de Dança de Lisboa, e que é a coreógrafa do espectáculo.

Interpretado pela Classe de Dança d’O Espaço, “Nisreen” vai estar em cena sexta-feira e sábado no auditório do colégio Pedro Arrupe.

Rita Coelho, que regressou recentemente de uma missão em São Tomé e Príncipe, contou à Renascença o que a levou a querer fazer este espectáculo solidário.

O que é que a levou a pensar fazer este espectáculo e contar esta história?

Estive na ilha de Lesbos, na Grécia, em Abril do ano passado, a trabalhar como médica voluntária com a Plataforma de Apoio aos Refugiados (PAR). Trabalhei muito com famílias e crianças, conheci muito de perto muitas histórias e o drama humano que ali se vive. Foi uma experiência muito forte. Quando voltei vinha com isto tudo no coração, com vontade de dar voz a estas histórias, mas depois faltavam-me as palavras. Na altura a discussão sobre os refugiados até estava um bocadinho mais acesa do que agora, as conversas eram muito à volta dos contornos políticos, de quem era a culpa, mas eu senti que havia uma leitura que nos estava a passar, que era a leitura do lado humano, da humanidade, o que é que isto significa para todos nós? Como é que nós permitimos que isto esteja a acontecer? Porque é que não nos inquietamos mais? Porque é que não somos mais chamados à acção? Porque é que não sentimos isto como um problema nosso? Andava muito inquieta com isto no coração, a pensar “como é que eu posso falar disto?”.

Até que falei disto com uma amiga que é bailarina e professora de dança contemporânea, a Carolina Themudo, ela já andava a trabalhar este tema com as alunas dela, e a fazer coreografias sobre refugiados. Começámos as duas a conversar e a sonhar, e começámos a montar um guião de um bailado inspirado numa história, a historia da Nisreen, que foi uma refugiada que eu conheci muito bem e de perto.

Nisreen é mesmo o nome desta jovem?

Sim, é um nome real. É uma jovem com 23 anos, conhecemo-nos em Lesbos. Eu estava a trabalhar na ilha, em parceria com a Cáritas e com o JRS, num centro de acolhimento para refugiados mais vulneráveis. Ela tinha vindo de Damasco, da Síria, onde morava, e já tinha estado noutros campos de refugiados com menos condições, com mais pessoas.

Conheci-a ela estava sozinha com o irmão de 13 anos, de quem era a responsável legal, os pais tinham ficado na Síria. Fiquei muito impressionada pela história dela. Acho que mais do que o drama humano, impressionaram-se muito as histórias de esperança e de luta que os refugiados trazem consigo, a vontade de viver, a vontade de agarrar a vida. A nós, que temos aqui a nossa paz dada por adquirida, isto mexe connosco...

Foi uma relação próxima?

Chegámos ao campo mais ou menos na mesma altura, em Abril de 2016. Ela já tinha estado noutro campo, com menores condições, com mais gente, mas por estar a viajar sozinha com o irmão menor foi colocada naquele centro para refugiados mais vulneráveis onde eu trabalhava.

Foi ela que se ofereceu como voluntária no meu trabalho. Eu como médica precisava de ajuda nas traduções, porque não falava nem entendia árabe, nem grego, e a Nisreen fala lindamente inglês. Acompanhou-me todos os dias no meu trabalho, aparecia sempre, nunca a ouvi queixar-se de cansaço, nem de fome, nem de calor, nada. Isso foi das coisas que mais me impressionou. Para mim foi uma lição muito grande, como é que eu também vivo no dia-a-dia as minhas lutas, e quando voltei senti mesmo “tenho de contar isto”. É uma lição para nós todos também.

A Nisreen era estudante de quê?

De engenharia de comunicação, estava na altura no terceiro ano, que concluiu. Ela sonha muito ser engenheira e uma das coisas que o bailado precisamente fala é sobre a Nisreen querer muito estudar. Ela estava no segundo ano quando a casa dela foi bombardeada. Perdeu a casa, perdeu tudo o que tinha, teve de mudar para casa dos avós, que ficava mais longe. Perdeu aí o segundo ano, mas no terceiro conseguiu fazer as disciplinas todas do segundo, mais o terceiro ano, com óptimas notas. Uma das coisas que ela traz na viagem são os diplomas da faculdade, traduzidos para inglês, e que traz assim ao peito como um dos maiores tesouros, é aquilo que lhe pode dar e permitir acesso a um futuro e a uma vida feliz.

Sabe alguma coisa dela?

Sim. Nós continuamos a falar e tenho tentado ir acompanhando a história dela e a vida dela. Esteve nove meses à espera, em Lesbos, até ao final de 2016. No início de Janeiro foi colocada na Holanda, ela e o irmão.

É uma história dramática, mas com algum fio de esperança também.

Acho que sim, e é isso também que se pretende contar no bailado. É uma história de esperança de quem não desiste de viver nem de ser feliz, de ter uma vida digna, e acho que nos ensina muito a posicionarmo-nos perante os nossos dramas e as nossas perdas e as injustiças. No fundo estas pessoas são vítimas de uma injustiça muito grande que é a guerra, uma coisa mito difícil de compreender.

A Rita é médica, pediatra em formação. Esta foi uma experiência que a marcou, ter ido em missão para um campo de refugiados na Grécia?

Sim, muito. Desde sempre tenho este bichinho… Estive agora recentemente, durante dois meses, em São Tomé e Príncipe, antes já tinha estado em Angola e na Guiné Bissau. Ou seja, tinha estado em sítios mais longe, mas com esta questão dos refugiados aqui às portas da Europa, pensei “vou para tão longe, e aqui tão perto, o que é que eu posso fazer?”. E na altura usei as minhas férias, que era a maneira mais fácil de conseguir ir de um momento para o outro. E marcou-me muito.

A bilheteira deste espectáculo reverte na totalidade para a Plataforma de Apoio aos Refugiados. É indispensável a ajuda que estão a dar no terreno?

Sim. Neste momento a Plataforma de Apoio aos Refugiados continua com as suas missões na linha da frente na Grécia, tanto em Atenas como em Lesbos, e tem feito um óptimo trabalho no terreno, muito diferenciador. Se nada mais podemos fazer que, pelo menos, se acompanhem estas pessoas no seu sofrimento. Isto devolve muito a dignidade a estas pessoas, e portanto para mim faz todo o sentido poder contribuir para que este trabalho possa ser mantido e continuado.

É um espectáculo feito por gente solidária?

Todo o espectáculo foi montado com a ajuda de muita gente que se ofereceu voluntariamente para ajudar nesta causa, desde a coreógrafa às bailarinas, quem nos empresta o auditório, cenografia, design. Todas as pessoas envolvidas neste projecto têm sido incansáveis, e de facto também encontraram aqui uma maneira óptima de, no seu dia-a-dia, poderem contribuir para esta causa. Ninguém está a ganhar nada com isto, e a bilheteira reverte inteiramente para a PAR.

Esta entrevista foi transmitida no espaço informativo das 12h, na Renascença, que às segundas-feiras dedicamos aos temas sociais e relacionados com a vida da Igreja.

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