08 mar, 2017 - 07:50 • José Alberto Lemos, em Nova Iorque
Há exactamente uma semana, Donald Trump saía do seu primeiro discurso perante o Congresso americano com uma imagem diferente. Pela primeira vez desde que tomou posse como Presidente dos Estados Unidos, deu uma imagem presidencial — respeitou o teleponto, foi mais contido no tom e na substância, não fez afirmações provocadoras, expôs a sua agenda num estilo e numa linguagem compatíveis com a dignidade de um órgão como o Congresso.
Fez, de certo modo, aquilo que se esperava, mesmo para uma personalidade como a dele. Um discurso no Congresso não é um comício, nem uma conferência de imprensa, nem se coaduna com provocações avulsas como as que debita no twitter.
As duas câmaras legislativas americanas (Câmara dos Representantes e Senado) têm uma dignidade que infunde respeito, mas sobretudo têm um poder capaz de bloquear a acção executiva de um presidente.
E se Trump poderá não ser muito sensível à dignidade dos legisladores — afinal o Congresso é por excelência o símbolo do “pântano” que ele prometeu drenar em Washington — é seguramente sensível ao seu poder.
O Presidente precisa dos seus votos para concretizar a agenda política e nem o facto de os republicanos serem maioritários em ambas as câmaras lhe dá essa garantia. Alguns dos tópicos da sua agenda contam com a oposição de muitos republicanos.
Talvez por táctica, mais do que por convicção, Trump deu, pois, uma imagem mais presidencial nesse discurso de terça-feira à noite (madrugada de quarta em Portugal). O que deixou os seus apoiantes mais relutantes esperançados de que finalmente se abria uma nova era na Casa Branca, e os seus assessores convictos de que o presidente tinha dado uma prova inequívoca da sua capacidade de liderança sobre o “establishment”.
Foi sol de pouca dura. Vinte quatro horas depois, o “Washington Post” revelava que o novo procurador-geral e ministro da Justiça, Jeff Sessions, tinha faltado à verdade no Senado, ao dizer que não teve contactos com o embaixador russo durante a campanha eleitoral, quando teve pelo menos dois encontros com o diplomata moscovita em Washington. Uma situação altamente embaraçosa, mas que não perturbou o Presidente, que na quinta-feira reafirmou a confiança em Sessions.
No entanto, as pressões sobre o ministro foram da exigência de demissão até ao compromisso de não se envolver no inquérito sobre os contactos entre responsáveis da campanha de Trump e os russos. Sessions acabou por conceder publicamente que não se imiscuiria nesse inquérito, o que provocou a fúria presidencial.
Segundo fontes da Casa Branca, na sexta-feira Trump reuniu o seu “staff” e disparou em todas as direcções, culpando a falta de coordenação da Casa Branca com o Departamento de Justiça pelo recuo de Sessions, que na opinião do Presidente deveria ter reagido de forma agressiva em vez de ceder.
A Casa Branca deveria, na opinião de Trump, ter instruído o Departamento de Justiça a contra-atacar no bom estilo presidencial. O próprio Trump tinha dito publicamente que não via necessidade de Sessions se afastar do inquérito sobre os contactos com os russos. A atitude do procurador-geral acabou por desautorizar o Presidente.
Mas o que terá incomodado Trump acima de qualquer outro factor foi que o caso Sessions ofuscou a sua primeira ida a bordo de um porta-aviões na quinta-feira. Depois de ter anunciado no Congresso que queria aumentar o orçamento da defesa em 10%, Trump vestiu um blusão e pôs um boné da tropa e estava à espera que a visita ao porta-aviões fosse a sua primeira consagração como comandante-em-chefe. Os media, porém, nesse dia só falavam do caso Sessions.
Escutas na Trump Tower?
E se há coisa com a qual o Presidente vive obcecado é com a agenda mediática. Daí que no sábado, em plena crise de défice de atenção, e não obstante estar já na sua estância da Flórida, tenha recomeçado a “twittar” furiosamente sobre uma das suas obsessões: uma nova teoria conspirativa.
Desta vez o alvo voltava a ser Obama, que teria mandado colocar escutas na Trump Tower durante a campanha eleitoral para detectar os contactos com os russos. A teoria não surgiu apenas da imaginação de Trump. Tinha sido alimentada nos dois dias anteriores por dois sites ultraconservadores, um dos quais o célebre Breitbart, fundado pelo seu actual estratega politico Steve Bannon, conotado com a extrema-direita.
Sem ter a mínima prova ou sequer um indício, Trump lançou quatro tweets, classificando o caso como um escândalo idêntico ao Nixon/Watergate e falou ainda de “mccarthismo”, numa alusão ao abuso do poder e “caça às bruxas”. E logo a seguir a Casa Branca reclamou uma investigação do Congresso ao caso.
A gravidade da acusação — imputar ao presidente Obama, a quem chamou “doente” num dos tweets, uma ilegalidade desta dimensão — não parece incomodar Trump. Nem tão-pouco a verosimilhança da mesma. O que lhe interessava era o efeito mediático e esse obteve-o. No domingo, o assunto dominava as notícias — quer os jornais, quer os talk-shows matinais das televisões. O caso Sessions estava esquecido.
Quanto à substância da acusação, o balão esvaziou-se rapidamente. Um porta-voz de Obama disse que a alegação era “simplesmente falsa”. Vários senadores democratas consideraram-na ridícula, alguns republicanos demarcaram-se dela remetendo a responsabilidade do caso para quem o lançou, mas sobretudo os responsáveis pelos serviços de “intelligence” vieram também desmenti-la.
James Clapper, que coordenava esses serviços no ano passado, garantiu que nada houve e que se houvesse ele teria tido conhecimento. E James Comey, o então e actual director do FBI, pediu mesmo ao Departamento de Justiça que fizesse uma declaração pública a refutar a alegação de Trump.
Pela gravidade do assunto, Comey entende que não deviam restar dúvidas entre o povo americano de que Obama não ordenou quaisquer escutas na Trump Tower.
De resto, o Presidente nem sequer tem poderes para ordenar escutas, que num Estado de Direito têm de ser aprovadas por um juiz. Ora, se porventura algum juiz tivesse ordenado escutas à Trump Tower durante a campanha eleitoral isso significava que lhe tinham sido apresentados indícios suficientemente fortes de conspiração entre a campanha de Trump e os russos. Algo que seria ainda mais incómodo para o actual Presidente, caso a investigação que ele agora reclama chegasse a tal conclusão.
Recuo na imigração
É neste clima frenético de criação de “factos alternativos” que a Administração continua a tentar levar a cabo a sua agenda. Abriu a semana com a nova ordem executiva sobre a imigração, mais cautelosa do que a anterior para evitar batalhas judiciais.
Desta vez anuncia um prazo para entrar em vigor (só na próxima semana), autoriza aqueles que têm visto válido e/ou “green card” a entrar no país (o que não aconteceu em Janeiro, tendo sido impedidas de entrar muitas pessoas que estavam em pleno voo para os EUA e que tinham documentação em ordem), exclui qualquer tratamento preferencial para famílias não muçulmanas (o que estava contemplado no anterior decreto e lhe deu uma tónica de clara discriminação baseada na religião) e exclui o Iraque da lista de países visados.
A exclusão dos cidadãos iraquianos resulta das pressões que foram exercidas pelos departamentos de Estado e de Defesa por causa dos milhares de iraquianos que colaboraram com as tropas americanas durante a ocupação do país e a quem foi prometida a emigração para os EUA como recompensa.
Além disso, o governo iraquiano comprometeu-se a não levantar obstáculos ao regresso dos seus cidadãos que sejam deportados dos EUA.
Para os cidadãos da Líbia, Irão, Iémen, Sudão, Somália e Síria que não tenham neste momento visto para entrar nos EUA, nos próximos 90 dias está-lhes vedado qualquer acesso.
Quanto aos refugiados, mantém-se o tecto de 55 mil por ano, menos de metade dos 110 mil que a administração Obama se tinha comprometido a receber. A única diferença é que os sírios estavam banidos definitivamente e agora a sua admissão fica apenas suspensa por 120 dias, tal como os provenientes dos outros países.
O novo decreto continua a ser uma medida discriminatória contra cidadãos de seis países muçulmanos donde nem sequer saíram quaisquer autores de atentados terroristas nos EUA, mas a nova redacção e o carácter provisório das medidas para permitir uma reformulação da política de imigração colocam-no em maior conformidade com as leis gerais do país e talvez evite uma nova batalha judicial.
Aliás, contrariando aquilo que escreveu perante o chumbo judicial da primeira ordem executiva — “vêmo-nos em tribunal” — Trump revogou agora esse decreto justamente para evitar batalhas judiciais.
Mais um exemplo das inúmeras contradições e estratégia errática que têm marcado esta administração.
Alternativa ao Obamacare
Mas aquilo que promete ser a maior batalha teve esta terça-feira um passo importante. Veio finalmente a público uma primeira versão da lei que pretende substituir o sistema de saúde do Presidente Obama – o chamado Obamacare.
Resultado de duas comissões no Congresso, esta primeira versão pretende substituir os subsídios a quem não podia pagar os seguros por benefícios fiscais e dar maior papel ao mercado do que estava previsto no sistema anterior.
Não há até agora um conhecimento aprofundado do projecto republicano, mas a polémica já está instalada. Os críticos dizem que os benefícios irão todos para os que têm maiores rendimentos e que vão ficar excluídos dos seguros de saúde cerca de 10 milhões de americanos por incapacidade financeira.
Recorde-se que o Obamacare proporcionou seguro de saúde a cerca de 20 milhões de pessoas que o não tinham por falta de dinheiro. Trump e os republicanos em geral prometeram acabar e substituir o Obamacare, mas o receio de desmantelar o sistema sem ter uma alternativa que funcione e que não retire o benefício de um seguro de saúde a quem o obteve fê-los recuar nesse desígnio.
Agora que duas comissões do Congresso trabalham no tema, começam a surgir à luz do dia as primeiras ideias concretas. A avaliar pelos primeiros indícios, a polémica em torno do Obamacare promete intensificar-se.